segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O bispo Pedro Casaldáliga tem de deixar sua residência em São Félix do Araguaia por sofrer ameaças


O religioso, de 84 anos e que sofre de Parkinson, vem há 40 anos lutando pelos direitos dos povos indígenas Xavante no Brasil
Matéria do jornal “La Vanguardia”, de Barcelona, publicada em 08/12/2012 
Tradução livre do original em língua castelhana para língua portuguesa feita por Rafael Oliveira do Prado para o site “Quem tem medo de democracia?”

D. Pedro Casaldáliga durante entrevista exclusiva ao QTMD? Foto: Ana Helena Tavares
Barcelona (da Agência Catalã de Notícias – ACN). – O bispo Pedro Casaldáliga, de 84 anos, se viu obrigado a deixar sua residência em São Félix do Araguaia e se refugiar a mais de mil quilômetros de distância por recomendação da Polícia Federal brasileira. O motivo foi a intensificação das ameaças de morte feitas contra Dom Pedro Casaldáliga nos últimos dias, as quais recebe em função do seu trabalho de mais de 40 anos em defesa dos direitos do povo Xavante.
A produtora “Minoria Absoluta”, que trabalha em uma minissérie sobre o religioso, foi uma das que denunciaram a situação. O fato de que o governo brasileiro tenha decidido tomar as terras (sic) dos “fazendeiros” (aspas no original) para devolvê-las aos indígenas, legítimos proprietários, agravou o conflito.
De fato, a produtora afirmou que a equipe que rodava a minissérie teve que modificar seu plano de trabalho. Concretamente, e por recomendação do governo brasileiro, a equipe teve que atravessar a floresta e fazer um trajeto de 48 horas de duração para evitar a zona de conflito.
Casaldáliga se converteu em um alvo para os “invasores” (aspas no original) que se apropriaram fraudulentamente da Terra Indígena (T.I.) Marâiwatsédé do povo Xavante. O bispo, de 84 anos e que sofre de Parkinson, trabalha há anos pelos povos indígenas e seus direitos fundamentais na prelazia de São Félix e se transformou na imagem internacional dessa causa.
Os latifundiários e os colonos que ocuparam fraudulentamente e mediante violência as terras (indígenas), serão despejados em pouco tempo segundo uma Ordem Ministerial que está por ser executada há mais de 20 anos. Segundo a Associação Araguaia com Casaldáliga informou em uma carta, o bispo se vê obrigado a pegar um avião escoltado pela polícia, e atualmente se encontra na casa de um amigo, o qual tem sua identidade e endereço mantidos em segredo por razões de segurança.
“Sentimo-nos plenamente identificados com a defesa da causa indígenas sempre levada adiante pelo bispo Pedro e pela Prelazia de São Félix” (aspas no original), disse a nota da Associação, que exorta à comunidade internacional a velar pela segurança de Casaldáliga e os direitos do povo Xavante.
Através do Twitter circulou o comunicado de apoio do Conselho Indígena Missionário (CIMI) – organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) –, assinado por associações e entidades vinculadas à luta dos povos indígenas e aos direitos humanos.
Recebido por tochas
“Eu cheguei em 1968 ao Rio de Janeiro (onde ficou cerca de 4 meses). Saímos de Madrid a 11 graus abaixo de zero e chegamos ao Rio de Janeiro a 38. Tinha aquelas tochas do aeroporto para a cidade. Umas tochas acesas… Eu ainda estou vendo… Aquele calor, com aquelas tochas… Passamos uma noite sem dormir.”
“Há muitos Brasis”
“E depois, em Petrópolis, eu fiz um curso que tem a Igreja Católica no Brasil para missionários que vêm de fora. Para estudar a língua e ter uma noção de história do país. Da Igreja no país. E foi providencial. Porque, na época da ditadura militar, se tivéssemos chegado diretamente, da maneira como nós chegamos (foto), para São Félix do Araguaia… Nós estaríamos perdidos. Completamente despistados, sem saber da situação verdadeira… As causas da situação. As migrações: por que motivo? A história do país. Que há muitos Brasis…”.
Sete dias de caminhão
“Foram quase sete dias de caminhão de São Paulo até aqui (São Félix do Araguaia). Porque a estrada estava se abrindo, não tinha estrada. As pontes eram pequenas. Tinha muitos córregos… Agora, quando se faz o caminho de Barra do Garças para cá, não se tem nem idéia de como era a região.”
“Cadê a mata do posto?”
“Está tudo desmatado. Os córregos todos profanados, alguns deles secos já perderam toda a vitalidade. Tinha mata… Se fala do Posto da Mata… Cadê a mata do posto?”
“Terra de ninguém”
D. Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil em janeiro de 68, portanto antes do AI-5 (que foi em dezembro do mesmo ano), mas garante: “já era clima de ditadura tensa”. E São Félix do Araguaia era, segundo ele, “um lugar onde o Estado não estava presente. Terra de ninguém.”
“Conflito com a política oficial”
D. Pedro lembra que, em 68, “começavam a vir as grandes fazendas com os incentivos fiscais da SUDAM.” E prossegue: “Automaticamente, para nós, a convivência com os pobres, pelo povo e pelos pequenos, significava entrar em conflito com o latifúndio. Entrar em conflito com a política oficial.”
“Estavam de um lado os índios, os posseiros, os peões… Do outro, os fazendeiros, a polícia, o Exército, o governo, o Estado… Logo, quase bem do início, já percebemos que a luta seria essa. Se nos posicionávamos do lado do povo, entrávamos em conflito com a política oficial.”
A guerrilha
“Aqui não teve guerrilha. A guerrilha foi no sul do Pará e no norte de Goiás. Só que para a repressão nós éramos guerrilha. Porque não conseguiam entender que uns estrangeiros se enfronhassem nesse mundo onde não tinha comunicação de jeito nenhum. Infraestrutura nenhuma… E rapazes novos que deixassem os estudos, o emprego e viessem para cá para não ganhar nada praticamente, só podiam ser guerrilheiros ou respaldo da guerrilha. Por isso, tivemos a repressão em cima… Sempre.”
“Diálogo de surdos”
“Foram presos muitos agentes de pastoral. Torturados. As presidências da CNBB foram muito solidárias conosco. E tivemos possibilidade de discutir com as autoridades por esse respaldo da CNBB. Só que era um diálogo de surdos.”
“Veio, em 1972, o ministro da Justiça da época. (Alfredo) Buzaid, ministro da Justiça (governo Médici). Estive com ele. Discutimos… Ele prometia o que não queria dar. Se impressionou no máximo pelo início da Reforma Agrária. Pelos sucessos de Santa Terezinha dentro da região.”
“Um grito!”
“E no dia da minha sagração (foto), lançamos uma carta pastoral. “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social.” E foi um grito! Porque escrevíamos dando nomes aos bois… Isso provocou mais presença da repressão.”
“Ação Cívica e Social do Exército”
“Nós tivemos aqui na região quatro operações da ACISO. “Ação Cívica e Social do Exército.” Que vinha para esses interiores arrancar dentes e consultar… Vinham de fato inspecionar. Porque abrangia a área estrita da Prelazia.”
“Vasculhavam as nossas casas… Exigiam a prisão… Levavam os agentes de pastoral presos e torturados para o Quartel do Exército de Campo Grande. Porque tudo era suspeito… Havia um clima de terror nessas regiões todas.”
“O povo foi torturado como cúmplice”
“Muitos anos depois, o povo se sentia livre para agir, para conversar. Em certas celebrações que tivemos, ainda havia uma reticência. Porque, além dos guerrilheiros que foram mortos, o povo foi torturado, maltratado como cúmplice… Os guerrilheiros tinham criado amizades, alguns eram médicos, professores.”
“Os índios sobram frente ao agronegócio”
Quanto aos índios, “já era uma atitude que continuava a política toda da colonização… Os índios sobravam. E estamos no mesmo problema… Sobram frente ao agronegócio. Porque a política indígena, a cosmovisão indígena, a cultura indígena, a economia indígena… É contrária à política e à economia do agronegócio. Por isso, eu dizia que tivemos problema na defesa desses três grupos de pessoas Os povos indígenas, os posseiros e os peões.”
“O problema é ter medo do medo”
“Detectamos o trabalho escravo. E o denunciamos… Foi aqui onde primeiro se denunciou o trabalho escravo.” Perguntado se em algum momento teve medo de morrer, o bispo do Araguaia não hesitou:
“Vários! Ainda agora, por exemplo… Essa situação dos intrusos, os que comandam a intrusão (de terras indígenas, clique aqui para conferir reportagem do QTMD? sobre o assunto). Acham que a culpa principal é minha por eu ter defendido esses índios.”
“Mas (na ditadura) éramos todos ameaçados… Eu tenho uma significação por ser bispo. Lógico… Eu digo sempre que o problema não é ter medo… O problema é ter medo do medo, (porque o medo) é uma reação defensiva.”
A morte do padre Burnier
Casaldáliga e o padre João Bosco Burnier, assassinado por um policial, estavam numa delegacia para defender mulheres torturadas. Uma delas é a que aparece na foto ao lado, observada por Casaldáliga, de óculos. Aquela foi uma das quatro ocasiões em que o bispo foi quase expulso do Brasil.
“O povo de Ribeirão Cascalheira derrubou a cadeia e a delegacia. Disseram que eu estava comandando esta derrubada da cadeia… Cadeia funcionando… E que podiam pedir a minha expulsão. Eu precisamente tinha saído rapidamente a Goiânia levando a denúncia da morte do Padre João Bosco (Burnier) e eu já não estava (em São Félix).”
As três dívidas dos governos com o povo
“Não há… Não há… Não há Reforma Agrária.”, enfatiza Dom Pedro Casaldáliga. “A Reforma Agrária supõe Reforma Agrícola também. Uma política a favor da Agricultura Familiar. Um acompanhamento dos assentamentos. Se tem feito alguns acordos… Mas não entram no que eu digo…”
“Eu digo que esses partidos, esses governos todos têm três dívidas: a da Reforma Agrária; a da Causa Indígena; e a dos Pequenos Projetos. De Agricultura Familiar, de Mini-Empresas… Têm essa dívida.”
“E com o capitalismo neoliberal… Com a política da exportação… Se confirma que esses países da América Latina e o Brasil, particularmente… Estão destinados a serem exportadores de matéria prima. É uma política contrária completamente às necessidades do povo.”
“O povo tenta fazer (a Reforma Agrária)… O MST e outras forças populares tentam gestos da Reforma Agrária. Mas a política oficial não é da Reforma Agrária. Insistindo: o que se pede é uma Reforma Agrária que seja uma Reforma Agrícola também. Porque terra é mais do que terra! Para o índio, sobretudo, é o habitat.”
“O bispo Pedro é comunista”
“Nós éramos comunistas, aqui na região, na Prelazia. E se deram casos pitorescos. Numa ocasião (na ditadura militar), a polícia lá em Santa Terezinha dizendo que: “O bispo Pedro é comunista”! Um dos camponeses falou: ‘Eu não sei o que é comunista. Agora, se comunista é ser da comunidade, trabalhar para a comunidade, o bispo Pedro é comunista’”.
“Os primeiros socialistas se inspiraram no Evangelho”
“No problema da justiça e da igualdade, estamos na mesma. Por motivos filosóficos, históricos e de fé… Também se diz: “Estamos no mesmo barco.” E, em certa medida, é verdade. Estamos no mesmo barco, mesmo que nós acrescentemos o motivo da fé. A procura da justiça social, da fraternidade universal… Os primeiros socialistas se inspiraram no Evangelho.”


“Dialético, marxista, humano”
“Por outra parte, se critica a Teologia da Libertação de ser marxista. Não é marxista. Porque existem categorias que são comuns… Dizer que os ricos cada vez mais ricos à custa dos pobres cada vez mais pobres… Isso é dialético! É marxista! É humano! Uma consideração humana da realidade dá esse resultado: que os ricos são cada vez mais ricos à custa dos pobres cada vez mais pobres.”
Socialização: a prerrogativa para a paz
“Quando fomos investigados aqui (na ditadura militar)… A Polícia Federal me parou e perguntava sobre socialismo. Eu dizia: se querem falar de socialismo, vamos falar de socialização. Se não se socializa a terra… A terra do campo e a terra urbana. A saúde, a educação, a comunicação… Se não se socializa esses bens maiores, essenciais… Não haverá paz.”
“Como Jesus optou…”
“Há um passado, um presente e um futuro (para a Teologia da Libertação). E, em todo caso, toda verdadeira teologia tem de ser Teologia da Libertação. A teologia cristã tem que optar pela igualdade fraterna da humanidade. Tem que optar pelos pobres, pelos pequenos, pelos marginalizados. Como Jesus optou.”
“Enfrentando, se preciso, as forças do poder. Como Jesus enfrentou as forças do Império Romano. As forças de uma religião utilizada… As forças do latifúndio na Palestina. Então… Um cristão que queira ser cristão de verdade tem que fazer essas opções. Isso chamamos de Teologia da Libertação.”
“A memória histórica tem que servir de lição.”
D. Pedro Casaldáliga concorda que se investiguem as violações dos direitos humanos que tenham ocorrido entre 1946 e 1988, como está fazendo a Comissão da Verdade. “Eu acho que é bom que se abranja também essa outra área.”
“Porque o perigo de torturar fisicamente e psicologicamente está nas mãos de todos os governos que sejam mais ou menos ditatoriais. A ditadura foi o momento alto dessa repressão… Desse abuso de poder. Mas devemos prevenir para qualquer outro momento.”
O bispo, porém, discorda da falta de punição aos torturadores: “Deveriam ser punidos. A memória histórica tem que servir de lição. Não pode ser apenas evocar estaticamente uns heróis e uns torturadores. Vários países da América Latina têm dado o exemplo disso”.
América Latina: “Pátria Grande”
Casaldáliga considera que a América Latina “está melhor hoje do que ontem. Porque temos governos mais ou menos de esquerda. Porque há uma maior consciência de que somos um continente.”
“Uma “Pátria Grande”, como diziam os libertadores. “A nossa América”, diziam eles também. Eu digo sempre que a América Latina e o Caribe ou se salvam continentalmente todos ou não se salvam. Tem que ser uma comunidade de nações, porque temos uma característica especial.”
“Paixão latino-americana”
“Já, em parte, se está conseguindo que a América Latina não seja tão abertamente o quintal dos Estados Unidos. Se está dando passos importantes. Quando se fala da Venezuela, eu digo que, com os erros de Hugo Chávez, tem umas contribuições significativas. Uma delas é essa paixão latino-americana.”
“O Brasil é outra coisa”
“Custou o Brasil tomar consciência de que somos América Latina. Pelo idioma… Por uma certa atitude hegemônica… Que, às vezes, não é suficientemente controlada… O Brasil é outra coisa.”
Não acredito, mas…
O bispo não acredita em novo golpe. Ao menos, não nos moldes do que ocorreu em 64. “Nem aqui nem em outros lugares da América Latina. Mas há outros tipos de golpes… Por isso, é bom prevenir… Para que as ditaduras não sejam camufladas… Podem ser ditaduras militares, podem ser ditaduras civis também…”
Os “outros tipos de golpes”…
“O governo do Paraguai não é legítimo, o governo de Honduras não é legítimo. Evidente. São golpes de Estado, são ditaduras camufladas a serviço dos interesses do Império. (o grande capital) Que agora é menos expressivamente dos países… A globalização os tem metido a todos no mesmo saco.”
“O nosso DNA é ser raça humana”
“Por outra parte, há um cenário, uma nova consciência de sermos uma unidade. Somos a família humana. Agora não se pode prescindir do resto do mundo. Sempre temos dito que o pecado dos EUA é se considerar como ele só no mundo. E o resto é resto.”
“Agora com a globalização e suas malezas, e seus abusos… Tem se aberto um espaço… Uma unidade. A característica primeira é de ser humanos…”
“Eu digo que o nosso DNA é ser raça humana. Família humana. Existem (“raças”) como identidade. Mas, dentro dessa identidade, primeiro é o fato de ser humanos. E toda a verdadeira política se devia dedicar a humanizar a humanidade.”
“Capitalismo com rosto humano é impossível”
Perguntado se há possibilidade de haver uma verdadeira democracia dentro do capitalismo, o bispo do Araguaia foi enfático: “Não! O capitalismo é nefasto. E não tem solução… O capitalismo é o egoísmo coletivo. É a segregação da imensa maioria. É o lucro pelo lucro. É a utilização das pessoas e dos povos a serviço de um grupo de privilegiados. Quando se trata de um “capitalismo com rosto humano” se está pedindo o impossível. É impossível.”
“A democracia é uma palavra profanada.” (continue lendo AQUI)

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