“É muita safadeza e canalhice pra um governo só!”, reagiu, indignado, Felipe Neto, um dos principais formadores de opinião do país. “Trocou-se o direito pelo submundo”, tuitou
o deputado do PSOL André Valente. “A mentira precisa ser combatida independente da ocasião. A corrupção da verdade não pode ser relativizada sob uma pretensa defesa da liberdade de expressão”,
declarou Marina Silva.
Nós até entendemos as reações indignadas. Também repudiamos a propagação de mentiras e desinformação – inclusive já fomos alvo desse tipo de campanha odiosa. Mas concordamos com André Mendonça: Agora não é hora de criminalizar fake news – nem agora, nem nunca.
Como o combate às fake news tem apelo político, congressistas aproveitaram para surfar a onda. Só no ano passado, mais de 20 projetos de lei foram propostos para tentar criminalizar notícias falsas. Eles prevêem multas e penas, de até oito anos, para quem criar ou compartilhar algo comprovadamente mentiroso. Há
iniciativas que querem, até, equiparar notícias falsas aos crimes que atentam contra a segurança nacional. Divulgou uma mentira no zap? Terrorista
O projeto que foi para frente foi a
Lei 13.834, que altera o Código Eleitoral e tipifica como crime a denunciação caluniosa contra candidatos em eleições. A partir das próximas eleições, quem noticiar ou compartilhar informação sobre uma investigação, processo ou inquérito contra um candidato sabidamente inocente pode ser condenado a até oito anos de prisão, além de pagar multa.
Na sanção presidencial, Jair Bolsonaro havia vetado o artigo que estende a mesma pena a quem compartilha, mas o Congresso derrubou o veto. “Quem inventa notícia falsa, quem faz o processo de destruição de reputação sabendo que está propagando mentiras, tem que ser severamente punido”, disse o senador petista Humberto Costa, engrossando o coro do endurecimento. O problema é: quem será o juiz para dizer se os nossos tios (ou os seus) são apenas ingênuos ou se enquadram como criminosos perversos que estão repassando um meme para destruir a democracia?
Como separar ingenuidade, falta de informação e má intenção em um submundo infinito como o zap? E como garantir que leis como essa não serão usadas contra movimentos sociais e inimigos declarados como… a imprensa? Jornalistas cometem erros todos os dias, é da natureza da profissão – de todas as profissões. Nossos erros serão enquadrados como “fake news” pelo Sergio Moro da vez?
O problema é esse: “Não existe um consenso ou definição definitiva sobre o que pode ser considerado fake news ou mentira”, alerta Francisco Brito Cruz, diretor do instituto de pesquisas de direito e tecnologia InternetLab e co-autor do livro Direito Eleitoral na era digital. “Você compartilhar, sem saber, uma coisa desatualizada, isso entra nessa categoria? Ou você, com o intuito de expressar sua opinião, compartilhar o que cientificamente não tá provado, também é mentira?”
A gente já viu o que acontece: a definição de “fake news” é moldada pelos operadores do direito da maneira que melhor lhes convém. Em março, o ministro Dias Toffoli
abriu o inquérito 4.781 para investigar fake news contra o STF. Super abrangente, a investigação não tem um alvo específico e foi usada para enquadrar inimigos: um mês depois, o relator Alexandre de Moraes a usou para ordenar a censura de uma reportagem da revista Crusoé sobre Toffoli. Chamou o texto, baseado em um documento, de
“típico exemplo de fake news”. (Nós o republicamos
aqui, porque isso é inaceitável).
A decisão foi revertida, mas criou um precedente perigoso. Então uma reportagem baseada em um documento é uma notícia falsa? Nós não concordamos com a reportagem, mas não achamos que seja mentirosa – tanto que, em nome da liberdade de expressão, reproduzimos o texto censurado aqui no TIB. “É esse tipo de coisa que pode aumentar se a gente aumenta o controle. Porque o jornalismo incomoda os poderosos”, diz Brito Cruz.
Em setembro, senadores criaram uma CPMI, Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, para debater fake news. O senador Angelo Coronel, presidente da CPMI, foi até a Rússia estudar o tema. A Rússia. Ela mesma. O país
mestre em manipular processos democráticos,
inclusive internacionais, usando desinformação, ao mesmo tempo em que legisla sobre fake news para massacrar vozes dissonantes.
Muitos membros dessa CPMI têm apreço pela censura: uma investigação do Aos Fatos mostrou
que eles já moveram 63 processos para remover conteúdo na internet. Dominada por partidos de oposição, a CPMI deve avançar na investigação sobre disparos em massa na campanha de Jair Bolsonaro – e é usada como arma política contra ele. É claro que os casos envolvendo a campanha eleitoral de Bolsonaro devem ser investigados – um a um, e não com legislação genérica e perigosa.
O jeitinho brasileiro: tipifica como crime que resolve
O Brasil tem um problema grave de analfabetismo funcional:
um em cada três brasileiros tem dificuldades em entender o que lê. Ao mesmo tempo, mais de 120 milhões de brasileiros usam o Facebook e WhatsApp, principais meios difusores de notícias falsas. Imagine cogitar condenar à multa ou reclusão quem compartilha uma mentira sem sequer entender direito o que acabou de ler? Pelas estatísticas, o peso dessa criminalização cairá sobre os mais pobres.
Mais grave ainda é o impacto disso para nós, jornalistas. Ainda que tenhamos protocolos de checagem, essa medida que criminaliza a difusão de informações é um atentado à liberdade de imprensa. Vai ficar muito mais difícil, arriscado e custoso fazer uma reportagem sobre um processo que, por exemplo, ainda não tem investigação oficial.
Em uma época em que o governo deslegitima como mentira tudo o que é publicado pela imprensa que não se ajoelha para ele, não é difícil prever que o mecanismo que hoje a esquerda sonha que será usado para anular a eleição se transforme em um poderoso meio para criminalizar jornalistas e remover informação da internet.
A nossa legislação já tem mecanismos para impedir a propagação de conteúdo que pode ferir direitos fundamentais. Os crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação –, por exemplo. Há casos que podem ser enquadrados como falsidade ideológica ou estelionato. O próprio código eleitoral já prevê pena de multa e detenção para difamação.
Ao endurecer as penas e criar tipos penais genéricos para enquadrar ‘fake news’, quem se comunica de forma legítima vai ficar intimidado – especialmente quem não tem acesso à justiça e a bons advogados. “Os políticos estão na mira e quem os incomoda vai sofrer mais consequências”, diz o pesquisador Brito Cruz.
Para André Mendonça, da AGU, agora não é um momento oportuno para discutir mais um tipo penal por causa do “calor do momento”. “Está tão acalorada essa discussão que eu acho que, se fizer isso agora, a gente corre o risco de se exceder demais ou de não dar o devido tratamento. A comunicação em rede vai ser a realidade do século 21. E você agir de uma forma talvez tão desproporcional, vai inviabilizar uma liberdade de expressão que também é um direito constitucional”, disse na entrevista ao UOL.
A gente concorda, e acha até mesmo que esse momento nunca vai existir. É preciso investigar, sim, campanhas ilegais bancadas por empresários, exércitos de trolls financiados com dinheiro público, grupos organizados que agem e lucram propagando mentiras. Mas transformar os emissores em criminosos não vai colocar na cadeia quem merece – e essa medida, acredite, eventualmente vai se voltar contra nós. Vai depender de quem decidirá o que é mentira.
FONTE: The Intercept Brasil