Os jihadistas utilizam a religião islâmica para aterrorizar o mundo, embaralhando espiritualidade, religião e fé
Espiritualidade, fé e religião são palavras que às vezes confundimos. É habitual ouvir-se alguém afirmar que tem a fé cristã, ou muçulmana. Seria mais correto dizer: tenho fé em Deus (Iahweh, o Pai, Allah) e professo a religião cristã, judaica ou muçulmana. A fé é uma relação profunda com o transcendente. Pode ser desordenada ou doce. Mas é sempre uma relação com o incomensuravelmente maior do que nós. A religião põe ordem na fé. Estabelece rituais, práticas e normas. É a Lei. Tem a função de regular. Não permitir que as manifestações de fé em estado puro encham o mundo da diversidade subversiva da graça de Deus. — E ainda há a espiritualidade. Essa não exige fé, e pode prescindir de uma religião.
A espiritualidade tem a natureza de uma sabedoria. Pode também pedir rituais. Mas não adora. Não há um deus na outra ponta. Não exige fé. Pode não ser encarada como, formalmente, uma religião. O budismo é assim. É uma sabedoria de viver, baseada, paradoxalmente, na ausência de sentido da vida. E na busca de um desapego, de iluminação. As religiões do Livro, ao contrário. Afinal, livros servem para definir sentidos. Lê-se para aprender a vida como Deus a quer. É em torno dos Livros que as religiões monoteístas se organizam. E a fé se fortalece pela prática dos ritos, ou se perde neles e fica seca. Às vezes há fé na reza de um rosário. Às vezes só há contas. Como pode acontecer com o masbaha que os muçulmanos desfiam enquanto conversam ou trabalham. Ou com a kipá judaica: humildade perante Iahweh, ou apenas um chapéu. Espiritualidade, fé e religião podem, no limite, se excluir.
Essa estrutura complexa do que é mais do que simplesmente humano e cotidiano em nós talvez possa jogar alguma luz sobre o atual fenômeno da “radicalização” que preside à onda terrorista que assusta o mundo e distribui o medo. Quem se deixa tomar pelo medo acaba por acreditar, sem o saber ou querer, que há no Terror um tipo específico de verdade, terrível. Não há. O Terror, este nosso de hoje, é uma deformação violenta de uma religião cuja fé é pacífica, cuja espiritualidade é suave. Diz-se: o terrorismo islâmico. Erro tremendo e perigoso. O Islã é uma espiritualidade de paz.
Islã significa submissão. Pôr-se sob a vontade de Allah é a espiritualidade própria dos islâmicos. Há um Livro, uma Lei. Em torno dele organiza-se a ritualística que individua o islamismo entre as outras religiões. Os seus praticantes são ou não profundamente tomados por uma fé. “Só Allah é Deus e Maomé é o seu profeta” pode ser apenas um preceito religioso a ser recitado várias vezes ao dia, ou o canto profundo de uma vida tomada pelo sagrado. Nesse caso, já é a máxima radicalidade. Não há mais radical do que Deus. A fé, qualquer fé, não pode sofrer “radicalização”. Os terroristas que se apresentam como guerreiros da fé mentem. Como os inquisidores que se viam como seus guardiões. O que uns e outros fizeram, fazem, é separar a religião da fé, e esterilizar ambas, torná-las arma de dominação. Os jihadistas não são, verdadeiramente, praticantes da religião muçulmana. Muito menos seguidores da fé de obediência do Islã. São semeadores da colheita podre da morte.
Os inquisidores usaram esse mesmo arado. Houve várias inquisições. A do século XII contra os cátaros. A italiana, do Santo Ofício, no século XVI, que perseguiu protestantes e intelectuais, deixou Galileu morrer em prisão domiciliar e queimou o filósofo Giordano Bruno em praça pública. A portuguesa, no século XV, que perseguiu os judeus, sob a forma dos cristãos-novos, e a espanhola, do XVI, que visou os muçulmanos convertidos. Houve uma inquisição protestante, sobretudo na Suíça e na Inglaterra. Em todos esses casos, o poder usou a religião ritualizada para atingir a espiritualidade de indivíduos e grupos. E matar a fé. Foram, todos eles, modos de “radicalização”. Só o poder, o que se tem e o que se pensa ter — caso do “Estado Islâmico”, que nem é Estado nem é islâmico — é capaz de “radicalização” nesse sentido de demonstração explícita de violência e intolerância. Religiosa, nesses casos, mas também política. A Revolução Francesa produziu o Terror. Stalin reinou com o terror. O poder, às vezes, aterroriza. Inclusive o das igrejas, seja qual for a forma que tiverem. As religiões podem ser usadas para isso. Os jihadistas utilizam, abusivamente, a religião islâmica para aterrorizar o mundo, embaralhando espiritualidade, religião e fé, e criando nas mentes simples e nos espíritos preconceituosos um amálgama diabólico.
A fé não pode ser radicalizada. Ela é uma graça. E, por mais arrogantes que sejam os que se dedicam a aterrorizar a vida, não podem forçar a mão de Deus. A fé é sempre amorosa. O Terror, não. Essa diferença é um abismo que ninguém transpõe. A falta de amor é o Mal. Simples assim.
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