Um dos livros mais interessantes sobre o processo produtivo do jornalismo e, por consequência, da própria construção da realidade social, é do pesquisador espanhol Miquel Rodrigo Alsina: A construção da notícia. A obra de teorias do jornalismo e da notícia reflete que o noticiário não é só resultado de um trabalho profissional de produção de textos, e muito menos uma simples representação da realidade, mas o resultado de um processo de construção que começa com a compreensão da realidade na qual os eventos acontecem, resumindo o processo em três fases – seleção, hierarquização e tematização da informação. Assim a mídia realiza uma atividade especializada da qual depende a construção da própria realidade social.
Alsina faz a seguinte definição: a notícia é uma representação social da realidade cotidiana, gerada institucionalmente e que se manifesta na construção de um mundo possível. Ela “é gerada numa instituição informativa que pressupõe uma complexa organização”. Mas, além disso, o papel da mídia é institucionalizado e tem a legitimidade de gerar a realidade socialmente relevante.
Embora se esteja diante de um processo complexo de produção industrial da notícia, a mídia não mostra isso com facilidade, pois quer transmitir a autoimagem sobre seu trabalho como sendo apenas uma receptora e retransmissora de informações – uma espécie de reprodutor da realidade. E, justamente por esse ser um contexto pouco conhecido da grande maioria da população, os conceitos de jornalismo como espelho da realidade e da objetividade jornalística tiveram terreno fértil por muito tempo.
A objetividade como estratégia
No livro, o pesquisador chama esses conceitos de táticas para ocultar o verdadeiro funcionamento da produção noticiária e, agrupando outros autores ao seu pensamento, faz um percurso pelo desenvolvimento do acontecimento e sua importância antes de ganhar a grande massa midiática da atualidade. “O jornalista é o autor de um mundo possível que se manifesta em forma de notícia. Na construção da notícia estão presentes três mundos distintos e que estão inter-relacionados; são eles: o mundo ‘real’, o mundo de referência e o mundo possível.”
O autor explica que o mundo real ou o mundo dos acontecimentos é onde o jornalismo recolhe parte das informações; o recorte é feito com base no mundo de referência – cultura, conhecimento, orientação editorial do veículo –, quando se estabelece a verossimilhança com os fatos conhecidos e recolhidos do mundo real; e daí se constrói o mundo possível com marcas da veracidade.
Evidentemente que tais procedimentos ocorrem dentro de um modelo de conveniência política, ideológica e fatores técnicos do órgão de comunicação que confecciona a notícia. Com isso a produção se reduz, basicamente, em seleção, hierarquização e tematização: contato direto e geral aos acontecimentos – exclusão/inclusão; atribuição de importância menor ou maior ao fato na edição e estabelecer os temas que devem centrar a atenção da opinião pública, respectivamente. Assim, o espanhol conclui que quando mais avançar na ordem desse processo maior será a discricionariedade do produtor, ou seja, o poder de controle e de interferência do profissional e do veículo de comunicação será maior na parte da hierarquização e da tematização dos assuntos, a saber.
A objetividade no jornalismo foi adotada por vários motivos, inicialmente nos EUA, para viabilizar uma ideologia de modelo liberal de imprensa. Tem como proposta básica desvincular os fatos do seu contexto histórico e de qualquer tipo de classe, além de neutralizar o sujeito do enunciado, o que de forma alguma é factível, ressalta Alsina. Seria o mesmo que excluir o observador da coisa observada. O conceito, aliás, nunca foi imutável à crítica e enfrentou sua maior crise nos anos de 1960, com o aparecimento do “novo jornalismo”, muito mais subjetivo e flexível na estrutura narrativa dos fatos, inclusive focado em contar mais os pequenos acontecimentos do cotidiano.
Ademais, conforme Alsina, o século 20 foi marcado pela utilização dos meios de comunicação para fins políticos e de guerras, o que acabou de vez com a ideia da objetividade como requisito de verdade das notícias. Como estratégia militar, exemplifica o autor, a informação pode sofrer um apagão ou vier em excesso. No primeiro caso, usam-se dados técnicos para justificar a não publicação, sonegando os fatos do conhecimento público; no segundo, a hiperinformação e as imagens chocantes são dadas para desviar a atenção da opinião pública da verdade, como no caso da Guerra do Golfo em 1990, por exemplo.
O questionamento permanente das verdades
Outro renome da pesquisa em jornalismo, o professor Nelson Traquina, lembra que, antes disso, dois fatores históricos também foram decisivos para pôr em dúvida o estatuto da objetividade jornalística: o uso da informação na propaganda da I Guerra Mundial (1914-1918) e o surgimento da profissão de relações públicas, que contribuíram para a perda da fé nos fatos. Segundo Traquina, com isso se criou uma ideologia da objetividade por uma fidelidade às regras e aos procedimentos na produção da notícia, quando até os fatos eram colocados em causa. A eficiência da objetividade nunca foi capaz de negar a subjetividade, mas necessária como método de trabalho para vencer o tempo e estandardizar a notícia dentro do sistema produtivo industrial.
Com essa exposição da estratégia da mídia no uso da notícia para apoio a interesses questionáveis, o conceito de imparcialidade foi muito enfraquecido e, atualmente, Alsina relata que se aplicam táticas mais sutis para manter uma aparente objetividade, entre elas: mostrar claramente quem são as fontes para assegurar a verdade – como não se tem certeza de que A falou a verdade fala-se com B e assim se têm duas opiniões sobre um acontecimento, embora sem certeza de que alguma expressou a verdade; a outra é apresentar provas auxiliares e posteriores que comprovem um fato; o uso de aspas na citação das fontes também é proposital; além de estruturar a informação de forma adequada – em primeiro lugar os fatos essenciais –, isolamento da informação da opinião e comentários.
Mesmo assim, não há relação clara entre esses meios empregados para a obtenção da imparcialidade, analisa o autor do livro A construção da notícia; pelo contrário, reforçam aspectos para leituras como: convidam-nos a uma recepção seletiva, reforçam o erro que os “fatos falam por si”, não têm credibilidade e são uma maneira disfarçada e introduzir opinião nas notícias, entre outras. “Servem apenas como procedimentos formais de rotina, considerados como características para proteger os produtores de erros e críticas, utilizados como rituais estratégicos de defesa”, conclui.
Nestes tempos líquidos, como Zygmunt Bauman denomina a atualidade, em que há poucas certezas e tudo parece efêmero, pode ser muito tentador e urgente se agarrar à objetividade como algo seguro diante de tantas incertezas. Mas se trata de um engano, afirma Alsina, citando inclusive Umberto Eco e Edgar Morin e argumentando que não existe receita para a objetividade, aconselhando apenas o permanente questionamento das verdades e o olhar crítico na leitura do noticiário.
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Elstor Hanzen é jornalista - Observatório da Imprensa com Diário do Mearim
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