Desde a virada do século, os entusiastas da expansão da internet comemoravam a progressiva eliminação do papel mediador do jornalismo, que tinha – e continua a ter – o compromisso de filtrar as informações para separar fatos de boatos e oferecer ao público uma referência de credibilidade. Pelo contrário, os entusiastas da rede vibravam com a possibilidade de todos poderem “comunicar” livremente. Clay Shirky, um dos mais festejados arautos dessa nova era, defendia a inversão das regras básicas do jornalismo e propunha “publicar primeiro e filtrar depois”:
“Redatores submetem suas matérias [aos editores] para serem publicadas ou rejeitadas antes que o público possa vê-las. Membros de uma comunidade, em contrapartida, dizem o que têm a dizer, e o que tem valor é separado do que é medíocre depois do fato” (citado por Bowman e Willis, We Media, 2003, p. 12, grifo meu).
Uma proposta que evidentemente só poderia ser válida para grupos fechados e específicos passou a ser alardeada como um hino libertário. Shirky, Bowman e Willis confiavam na capacidade de autocorreção das informações, que lhes garantiria credibilidade, porque “as pessoas” estariam interessadas em “compartilhar suas histórias e publicar a verdade”.
Pelo visto, e à parte quaisquer outras considerações sobre esse supremo – ou, talvez, suposto – idealismo, não tinham a mais pálida ideia de como funciona o senso comum, nem a maneira pela qual a política move suas engrenagens no campo da comunicação.
Publicando primeiro
“Boatos rolam na região da praia do Pernambuco, Maré mansa, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra… Se é boato ou não devemos ficar alerta” (sic).
Os administradores da página do Guarujá Alerta no Facebook – que depois apagaram a postagem, como se omitir o erro eliminasse suas consequências – poderiam dizem em sua defesa que seguiram à risca a receita do “publicar primeiro e confirmar depois”. Afinal, “as pessoas” só estão interessadas em descobrir a verdade. Se fosse mentira, logo contestariam a informação, não é mesmo?
O resultado, todos sabemos. O boato se espalhou, junto com imagens de um retrato falado produzido pela polícia do Rio há alguns anos para a investigação de um crime ainda sem solução. Uma mulher, casada e mãe de duas filhas, moradora em um bairro pobre do Guarujá, foi confundida com a suposta sequestradora, cercada e linchada por vizinhos.
Agora, outros entusiastas da rede vêm dizer que foi preciso ocorrer uma tragédia para descobrir o que pode acontecer quando um boato se espalha no mundo virtual. Naturalmente, não fizeram caso do que tanta gente, há tanto tempo, vem escrevendo sobre isso, a partir de raciocínios elementares. Pois não é muito óbvia a tendência a compartilhar automática e irrefletidamente o que cai na rede? Não é mais óbvio ainda que boatos desse tipo tendam a provocar pânico? E não é também muito óbvio que o que cai na rede é incontrolável, exatamente pela falta de filtros?
O caldo de cultura
Foram muitos os que acusaram, em artigos e comentários nas mídias sociais, o “efeito Rachel Sheherazade” no caso da mulher trucidada no Guarujá. Como se recorda, a apresentadora da SBT criou polêmica ao defender a ação de um grupo de jovens de classe média que agrediram, despiram e ataram a um poste um adolescente negro infrator, no bairro do Flamengo, no Rio, há cerca de três meses. O argumento: se a Justiça é lenta ou omissa, os cidadãos têm o direito de agir por conta própria.
É evidente a incitação a ações que podem resultar em linchamentos, mas a apresentadora do SBT não chega aos pés do que fazem sistematicamente os apresentadores de programas policiais em sua exploração do “mundo cão”.
O que não se costuma considerar nessa crítica é que esses programas respondem aos desejos de seu público, ou não teriam audiência.
Isso não é uma justificativa: é apenas uma desagradável constatação da simbiose de interesses entre mídia e público, que transborda agora para o mundo virtual, onde se multiplicam páginas de clones desses apresentadores dublês de justiceiros.
É também uma constatação de que os filtros próprios do jornalismo estão associados a uma ética ausente nesse tipo de programa, o que deveria merecer uma atenção bem maior da que até hoje foi dispensada a esse tema, seja por parte das entidades representativas dos jornalistas, seja por parte das autoridades.
Raízes da barbárie
“Os gestos da matilha humana reiteram milênios de preconceitos, calúnias contra minorias, genocídios programados por dirigentes religiosos ou políticos”, assinalou o professor Roberto Romano em artigo na edição de domingo (11/5) do Estado de S.Paulo, para lembrar as origens remotas de atos como o que ocorreu no Guarujá. Trazendo a história para o nosso tempo e o nosso quintal, argumenta:
“A lentidão e a distância que mantêm a Justiça longe da vida civil ajudam poderosamente a fábrica de linchamentos em nosso país. Sem juízes que realmente decidam em tempo certo, com base na lei, fica a tentação do justiçamento e da barbárie”.
Longa e permanente luta, essa de transformar as instituições para consolidá-las e aproximá-las da vida cotidiana. Mais difícil ainda diante do recrudescimento do nazismo, pelo mundo e mesmo no Brasil. Tempos sombrios, como aponta o professor:
Quem lincha incentivado por rumores e com fundamento no preconceito pode perfeitamente aplaudir o massacre de milhões.”
A propósito, os defensores da “ação direta”, tática que emergiu com força desde as manifestações de junho do ano passado, poderiam refletir um pouco sobre isso. As causas mais puras às vezes provocam resultados catastróficos.
Campanhas preventivas
Na parte final de seu livro sobre Ética, jornalismo e nova mídia (Editora Vozes, 2009), Caio Túlio Costa anotou: “A possibilidade de qualquer um ter nas mãos uma ferramenta de comunicação capaz de atingir milhões de pessoas é que é inédita e por isso espantosa”. Espantosa em vários sentidos, inclusive neste que propicia a disseminação de boatos que resultam em tragédias e atiçam nossos instintos mais primitivos.
Jornalistas, pelo menos em princípio, devem obedecer ao seu Código de Ética. Nas melhores escolas, recebem formação que lhes esclarece sobre suas responsabilidades. Mas o que dizer dessa multidão que atua na rede?
Ninguém deveria ignorar que a internet não apenas reflete o comportamento das pessoas no mundo físico, mas também os exacerba e frequentemente os transforma devido à ausência do contato presencial e, em muitos casos, ao conforto propiciado pelo anonimato. Ainda assim, campanhas de alerta quanto aos riscos da disseminação de boatos, como as que já circulam no Facebook, poderiam ser muito úteis. De nada adiantariam contra os interessados em promover o caos ou a barbárie, mas poderiam reduzir-lhes o número de seguidores.
Não custaria tentar “viralizar” à contracorrente: insistir sobre a fonte das informações, desmontar boatos, estimular as pessoas a refletir antes de agir, a duvidar antes de acreditar. Quem sabe, o incentivo ao exercício da crítica possa ser capaz de reduzir o grau de irresponsabilidade no mundo virtual e suas nefastas consequências.
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
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