Por Rodrigo Lago
Conselheiro e Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA
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A Lei Complementar n° 135/10, conhecida por Lei Ficha Limpa, continua causando estragos democráticos para a legislatura eleita em 2010. Muitos candidatos eleitos encontram dificuldades para tomar posse, mesmo após o STF ter decidido que a lei não seria aplicável para as eleições do ano passado.
Desde o protocolo do projeto de lei, muitas dúvidas surgiam sobre a constitucionalidade de algumas novas causas de inelegibilidade que afrontavam recente decisão do STF, na ADPF n° 144 que pretendia barrar candidatos considerados “fichas sujas”, e além de outras duas questões que se mostravam relevantes àquele momento: a possibilidade das novas causas de inelegibilidade apanharem fatos do passado para barrar as candidaturas do futuro (por alguns chamada de retroatividade da lei); e a aplicação das alterações legislativas já para as Eleições 2010, que ocorreriam em menos de quatro meses após a publicação da lei.
O resultado da inércia dos legitimados em provocar o STF seria terrível: a insegurança jurídica. Isso porque muitos candidatos assumiram o risco da candidatura impugnada, na esperança de ver a questão resolvida pelo STF antes do dia da eleição. A pretensão não seria fácil, porque o STF só julgaria algum caso concreto, ou seja, algum registro de candidatura em grau de recurso, e depois de ter sido julgado pelo respectivo TRE em primeira instância, e pelo TSE em recurso ordinário.
O STF só conseguiu se reunir para decidir um caso da Ficha Limpa faltando poucos dias para as eleições. Era o recurso extraordinário interposto por Joaquim Roriz (PSC-DF), que pretendia ser candidato ao governo do Distrito Federal, e considerado um dos favoritos na disputa. Mas o Tribunal estava desfalcado de um ministro, devido à aposentadoria do ministro Eros Grau, e porque o presidente da República ainda não havia indicado um substituto. O resultado de um tribunal que estava dividido, e que tinha composição provisória em número par, acabou sendo um empate. E o Tribunal se viu em um impasse: como desempatar a questão sem o décimo primeiro ministro? O julgamento foi suspenso e, antes mesmo de ser retomado, o pretenso candidato Joaquim Roriz desistiu da disputa, impedindo a solução do caso.
O STF só retornou ao tema depois do dia da votação, no caso Jader Barbalho (PMDB-PA) x Ficha Limpa. Como era previsível, ocorreu um novo empate, e um novo impasse. Desta vez, porém, o STF optou por uma solução provisória, decidindo o processo, mas sem impedir a rediscussão da tese em um processo futuro, já quando o Tribunal estivesse completo, com um número ímpar de ministros, a impedir novo empate. E a decisão foi por manter o julgamento do TSE, que era contrário ao recorrente, e seus votos ao Senado Federal permaneceram anulados. Ele tinha sido o segundo mais votado nas eleições para senador da República pelo Pará, e ficaria com a segunda vaga se vencesse o recurso. Por coincidência, o terceiro colocado nestas mesmas eleições, o ex-deputado Paulo Rocha (PT-PA), sofreu com impugnação por idêntico fundamento – a conhecida alínea “k” da Lei Ficha Limpa, a impedir a candidatura do político que renunciou mandato para evitar cassação. Assim, com o impedimento de ambos, e por decisão de discutível legalidade, em vez de considerar prejudicada a eleição porque somados os votos de ambos ultrapassava a metade dos votos válidos, o TRE/PA decidiu diplomar como senadora a ex-vereadora de Belém, Marinor Silva (PSOL-PA), que foi apenas a quarta colocada naquelas eleições.
Depois disso o STF voltaria a julgar a questão constitucional que envolvia a Lei Ficha Limpa. Mas só o faria após o recesso judiciário de janeiro de 2011, e por conseguinte após a posse dos eleitos – e também dos que não foram eleitos, mas foram beneficiados pelo indeferimento das candidaturas dos eleitos. Em 23 de março de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou o recurso interposto pelo pretenso candidato a deputado estadual em Minas Gerais, Leonídio Bouças (PMDB-MG). Mesmo que vencesse o recurso, a validação de seus votos não alteraria a composição da Assembléia Legislativa, e ele seria proclamado apenas suplente de deputado estadual. E foi o que ocorreu. O STF optou por julgar apenas a discussão envolvendo a possibilidade de se aplicar a questão que envolvia o art. 16 da Constituição, e decidiu que a Lei Ficha Limpa não seria aplicável para as Eleições 2010, deferindo o registro daquele candidato.
Em razão do regime de repercussão geral das decisões do STF, o Tribunal decidiu que a todos os demais processos seria aplicável a mesma tese constitucional, sendo desnecessário que cada um dos processos fosse julgado pelo STF, especialmente pelo Plenário. Ainda assim, muitos estão frustrados com tamanha demora, porque acreditavam que no dia seguinte todos os candidatos barrados pela Lei Ficha Limpa assumiriam os seus mandatos. Outros pensaram que, nos dias que se seguissem, os candidatos conquistariam decisões favoráveis, revertendo o indeferimento dos registros de candidaturas e de logo seriam empossados. Mas, já ultrapassado mais de um mês após aquela histórica sessão do STF, os candidatos barrados indevidamente no TSE pela Lei Ficha Limpa continuam fora de seus mandatos.
O que ocorre, além de uma injustificável demora na apreciação de cada processo específico, é que nem todos os candidatos barrados pela Lei Ficha Limpa deixam de ser inelegíveis quando afastada a aplicação da lei para o processo eleitoral de 2010. Isso porque seria aplicável a redação anterior da Lei Complementar n° 64/90, com menos causas de inelegibilidade, e cujos prazos de impedimento das candidaturas eram menores. E foi exatamente isso que fez o TSE em um julgamento já após a decisão do STF. No recurso interposto por Rainel Araújo, pretenso candidato a deputado estadual no Tocantins, o TSE analisou o seu caso, afastou a aplicação da Lei Ficha Limpa, mas concluiu que, mesmo pela redação anterior da Lei Complementar n° 64/90, a Lei das Inelegibilidades, o candidato era inelegível, como noticiou o TSE.
É custoso acreditar que mesmo os que realmente não são inelegíveis, se afastada a aplicação da Lei Ficha Limpa, ainda precisam percorrer um longo caminho até serem empossados. Primeiro é necessário que o relator de seu processo no STF ou no TSE acolha o seu recurso, analisando se realmente o pretenso candidato deixa se ser inelegível com o afastamento da LC n° 135/10. Caso tenha êxito no recurso, a decisão deverá ser comunicada ao respectivo TRE. É que o TSE e o STF não têm competência para proclamar o resultado das eleições. E somente o TRE verificará se o êxito no recurso daquele candidato altera a composição do parlamento, no caso de eleições proporcionais, porque a validação dos votos do candidato, até então computados como nulos, altera o quociente eleitoral, e pode alterar a distribuição de vagas no Poder Legislativo – nos casos de deputados estaduais e federais, apenas, para os quais a Constituição prevê a disputa pelo sistema proporcional. Por fim, ainda poderá encontrar alguma resistência pelo Congresso Nacional para assumir o mandato, por aplicação (indevida) do denominado Estatuto Parlamentar a conceder prazo para a defesa dos parlamentares que tiverem que ser afastados para a posse dos barrados pela Lei Ficha Limpa.
Basta pegar como exemplo o caso da deputada Janete Capiberibe (PSB-AP), que venceu o seu recurso no STF, por decisão monocrática do min. Joaquim Barbosa desde o dia 11 de abril de 2011, e até a presente data sequer a decisão foi comunicada ao TRE/AP. O Tribunal Regional, por sua vez, não pôde proclamar novo resultado e os votos da deputada permanecem computados como nulos, e ela está sem diploma eleitoral, não podendo pleitear a sua posse na Câmara dos Deputados.
Em que pese jurídicos argumentos, a justificar o atraso burocrático, o fato representa grave ofensa à Constituição. Uma vez tendo considerado que o STF afirmou que a Lei Ficha Limpa não poderia ter eficácia nas Eleições 2010, o decurso de um dia que seja do mandato dos candidatos indevidamente barrados viola o princípio democrático. E isso vicia o exercício do poder, titulado por quem não detém legitimidade popular, porque não foi eleito. Os dias vão se passando, e poucos entendem o porquê de tanta demora para que aqueles que verdadeiramente foram eleitos possam tomar posse no Congresso Nacional, e também nas assembléias legislativas. Portanto, apesar de declarar que a Lei Ficha Limpa não produz efeitos para as Eleições 2010, na prática não é isso que se vê, porque os candidatos efetivamente eleitos já estão há três meses afastados de seus mandatos por conta desta lei, e muitos deles sequer tem expectativa de quando tomarão posse.
Mas a situação mais esdrúxula é o que ocorre no Pará. Como já mencionado acima, o segundo colocado na disputa, o ex-deputado Jader Barbalho (PMDB-PA), foi barrado no TSE pela Lei Ficha Limpa e seu recurso no STF terminou com um empate, sendo proclamada uma decisão definitiva ao seu caso, mas provisória quanto à tese. Tanto é assim que o STF voltou a debater o mesmo tema, sobre a aplicação da Lei Ficha Limpa ao processo eleitoral de 2010, no caso Leonídio Bouças (PMDB-MG), e chegou a conclusão antagônica ao resultado proclamado no caso Jader Barbalho, abrindo as portas para a reversão do indeferimento de outras candidaturas.
Todavia, um fato inusitado ocorreu, antes mesmo que o acórdão (que é a formalização da decisão dos tribunais) do recurso de Jader Barbalho fosse concluído, e ele pudesse recorrer para tentar reformá-lo. O recurso do seu adversário, o ex-deputado Paulo Rocha (PT-PA), barrado no TSE pelo mesmo motivo, e que ficou em terceiro lugar nessa mesma disputa, foi acolhido nesta última semana por decisão monocrática do min. Dias Toffoli. Portanto, corre-se o risco, iminente, do ex-deputado Paulo Rocha (PT-PA) assumir o mandato que deveria estar sendo ocupado pelo ex-senador Jader Barbalho (PMDB-PA), e que está presentemente ocupado pela senadora Marinor Brito (PSOL-PA).
Se no Direito Penal, propriamente dito, a injustiça causada a um não pode ser estendida a nenhum outro, sob pena de uso indevido do princípio isonômico, o mesmo não ocorre no Direito Eleitoral. A lei que for aplicável a um, por mais injusta que possa parecer, deverá ser aplicada a todos para garantir o equilíbrio das forças na disputa. No processo eleitoral, injustiça maior não há que aplicar regras diferentes aos concorrentes. A função jurisdicional mais marcante da Justiça Eleitoral é garantir a igualdade de forças e oportunidades aos concorrentes. É de se perguntar: onde está o princípio da isonomia neste caso? Por que a lei acaba valendo ao Chico, e não alcança o Francisco? Qual o respeito deve essa situação ao princípio democrático?
Essa situação mostra o quanto estrago fez a Lei Ficha Limpa ao processo eleitoral de 2010. E é impossível se contabilizar o estrago eleitoral causado pela lei nestas eleições. Quantos candidatos não teriam visto minguar os seus votos em razão da insegurança jurídica de suas candidaturas, com a séria possibilidade de anulação de seus votos. Essa situação enfraquecia os movimentos políticos de muitas candidaturas, ocasionando perda de apoio político, e até mesmo no financiamento das campanhas.
Estão brincando de fazer democracia no Brasil!
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