FONTE: Folha.com
O médico paulista Drauzio Varella, 67, é fera em apresentar os temas da medicina para leigos. Assim, o colunista da Folha emplaca séries e mais séries sobre saúde no "Fantástico", dominical da Globo. Quem aprecia o trabalho do homem que deu voz aos presos em "Estação Carandiru" vai se deliciar com esta coletânea de crônicas publicadas na Folha ao longo de dez anos.
"A Teoria das Janelas Quebradas" traz 65 textos com assuntos bem variados. O consumo de drogas é um dos destaques. Drauzio escreve, por exemplo, sobre a dependência em maconha e cocaína, sem julgamentos morais. O médico se coloca na posição de amigo e evita qualquer imagem de superioridade. Ao falar de álcool, por exemplo, confessa que prefere uma cachacinha.
O título do livro é uma referência a um dos textos, que sintetiza a ideia principal do livro: um médico atento às novidades que, antes de tudo, é um cidadão preocupado com o mundo e as pessoas a sua volta.
"Teoria das Janelas Quebradas" é uma tese defendida por americanos em 1982, segundo a qual a presença de lixo nas ruas e de pichação nas paredes provoca mais desordem, induz ao vandalismo e aos pequenos crimes.
Leia uma crônica de "A Teoria das Janelas Quebradas" sobre as queixas de usuários veteranos sobre qualidade da erva de hoje --ao notarem a perda da sensibilidade, alguns brincam com a fonética dizendo "não tô tintindo nada".
Todo maconheiro velho reclama da qualidade da maconha atual. Perto da maconha daquele tempo, dizem, a de agora é uma palha sem graça.
A observação é paradoxal, porque a maconha de hoje tem concentrações muito mais altas de THC, o componente psicoativo da planta, do que as contidas nos baseados de vinte anos atrás.
A queixa procede, no entanto. O THC inalado, ao chegar ao cérebro, libera quantidades suprafisiológicas de neurotransmissores -como a dopamina- ligados às sensações de prazer e de recompensa. Como tentativa de adaptação à agressão química representada pela repetição do estímulo, os circuitos de neurônios envolvidos na resposta, sobrecarregados, perdem gradativamente a sensibilidade à droga, produzindo concentrações cada vez mais baixas dos referidos neurotransmissores. Nessa fase, a nostalgia toma conta do espírito do usuário.
É por causa desse mecanismo de tolerância ou dessensibilização que o prazer induzido não apenas pelo THC mas por qualquer droga psicoativa diminui de intensidade com a administração prolongada. Se é assim, por que o usuário crônico insiste na busca de uma recompensa que não mais encontrará? Por que fraqueja depois de ter jurado parar? Por que alguém cheira cocaína mesmo quando vive o terror das alucinações persecutórias toda vez que o faz?
A resposta está nos circuitos de neurônios responsáveis pela motivação, memória e aprendizado.
A memória e o processo de aprendizado, bem como a exposição do cérebro a drogas psicoativas, modificam a arquitetura das sinapses (o espaço existente entre dois neurônios através do qual o estímulo é modulado ao passar), dando início a uma cadeia de eventos moleculares capazes de alterar por muito tempo o comportamento individual.
Esse mecanismo compartilhado permite entender por que a "fissura" associada à abstinência costuma ser disparada por memórias ligadas ao ato de consumo da droga. Conscientemente, o usuário pode decidir tomar outra dose ao recordar a euforia ou a felicidade sentida antes. Estímulos sensoriais, no entanto, podem causar efeito semelhante: a visão do cachimbo de crack, o tilintar do gelo no copo, o esconderijo para fumar maconha. Até lembranças mais abstratas (um cheiro, uma música, um acontecimento, uma luminosidade) podem induzir à procura da droga mesmo na ausência de percepção consciente.
Não faz sentido falar generalizadamente em "efeito das drogas", visto que cada uma age segundo mecanismos farmacológicos específicos. Mas, se existe um efeito comum a todas elas, é a estimulação dos circuitos cerebrais de recompensa mediada pela liberação de dopamina, através da interação da droga com receptores localizados na superfície dos neurônios.
Está bem documentado que o bombardeio incessante desses neurônios reduz progressivamente o número de receptores que respondem à dopamina. À medida que o cérebro fica menos sensível à dopamina, o usuário começa a perder a sensibilidade às alegrias cotidianas: namorar, assistir a um filme, ler um livro. O único estímulo ainda intenso o bastante para ativar-lhe os circuitos da motivação e do prazer é o impacto da droga nos neurônios.
Essa inversão de prioridades motivacionais torna seus atos incompreensíveis. Não é verdade que o adolescente rouba o anel de estimação da mãe para comprar crack porque não tem amor por ela; ele o faz simplesmente porque gosta mais do crack.
A maioria dos que se libertaram da dependência de uma droga se queixa de que é preciso lutar pelo resto da vida contra a tentação de recair. Não conhecemos com exatidão os passos pelos quais as drogas psicoativas induzem alterações permanentes no cérebro. Mas os especialistas suspeitam que a resposta esteja nas distorções que elas provocam na estrutura das sinapses.
Nos últimos anos, foi demonstrado que, durante o processo de memorização, surgem novas ramificações nos neurônios. E que esses novos prolongamentos vão estabelecer sinapses duradouras com neurônios da vizinhança, aumentando a complexidade e a versatilidade da circuitaria nas áreas do cérebro que coordenam a memória.
Quando sensibilizamos camundongos à cocaína, ocorre fenômeno semelhante: surgem novas ramificações e novas sinapses, mas nos neurônios situados nas áreas que controlam os sistemas de recompensa e de tomada de decisões.
Os circuitos envolvidos no aprendizado e na memória estão sendo vasculhados pelos que estudam a neurobiologia da adição. Talvez esses circuitos nos permitam entender por que alguns experimentam drogas para viver uma experiência agradável e não se tornam dependentes, enquanto outros transformam seu uso em compulsão destruidora.
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