DO CONGRESSO EM FOCO
Marcelo Tognozzi, jornalista e secretário de imprensa da Presidência do Senado, assessor do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), contestou as informações contidas no artigo publicado ontem (26) no site Congresso em Foco, intitulado “Sarney e o torturador, Ustra e o presidente”, de autoria do jornalista Luiz Cláudio Cunha. Tognozzi enviou um e-mail com seus argumentos para o próprio Luiz Cláudio Cunha, com cópia para o Congresso em Foco. Luiz Cláudio, por sua vez, respondeu a Tognozzi.
Sarney e Luiz Cláudio Cunha: polêmica instalada
Abaixo, a contestação do assessor de Sarney e a tréplica de Luiz Cláudio, para que o leitor tire as suas próprias conclusões.
A contestação de Tognozzi
Caro Luiz Cláudio,
Existem algumas imprecisões de ordem técnica no seu artigo publicado no Congresso em Foco, as quais merecem retificação. Me refiro aos fatos envolvendo o presidente José Sarney narrados por você:
1. O presidente José Sarney não recebeu qualquer citação da Justiça para comparecer no Fórum João Mendes e depor como testemunha de defesa do coronel Ustra. Se receber, não irá comparecer porque se recusa a participar de uma farsa armada pela defesa de Ustra com o único objetivo de atrasar o processo em curso.
Sarney esteve com Ustra apenas uma vez, quando era presidente da República e o encontrou no Uruguai ocupando o posto de adido militar. Foi nesta viagem que a ex-deputada Bete Mendes acusou Ustra de tê-la torturado e o Brasil conheceu seu passado de agente da repressão.
Portanto, não é correto afirmar que o senador Sarney aceitou ser testemunha do coronel Ustra e muito menos que ele irá “louvar e enaltecer o maior icone vivo da repressão mais feroz e mais longa”, conforme você escreveu.
2. Você pode verificar no andamento do processo em anexo, documento público emitido pela Justiça de São Paulo e disponível na internet, que o juiz ainda não mandou citar as testemunhas de defesa; apenas as testemunhas de acusação. No caso do presidente Sarney e do ex-senador Jarbas Passarinho, de 91 anos, ambos arrolados pela defesa de Ustra e residentes em Brasília, o rito processual, como você conhece bem, prevê a expedição de cartas precatórias para serem ouvidos em Brasília. Jamais, portanto, Sarney poderia depor no Fórum João Mendes Junior, de São Paulo às 14h30 desta quarta-feira, dia 27, conforme você informou aos seus leitores. Não apenas porque ele se recusa a testemunhar a favor de Ustra, como também pelo rito da Justiça.
3. Como você sabe, fui membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) representando a ABI. Por inúmeras vezes nos deparamos com casos semelhantes a este, em que a defesa opta por adotar procedimentos protelatórios com o único e claro objetivo de tumultuar e atrasar o processo.
Tanto o ex-ministro Paulo Vanucchi, que presidiu o CDDPH e que é citado por você no artigo, quando o advogado de acusação, Fábio Konder, podem confirmar a rotina deste tipo de conduta por parte de alguns advogados de réus acusados de tortura.
4. O presidente Sarney nunca foi camarada do coronel Ustra e jamais manteve com ele qualquer vínculo de amizade. Em 1971, quando ocorreu o assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino, Sarney havia acabado de assumir uma cadeira no Senado, eleito pelo Maranhão, após governar o estado e ter mantido relações de amizade com notórios perseguidos da ditadura como o ex-presidente Juscelino Kubitschek. O próprio JK escreveu a Sarney agradecendo a forma como foi tratado por ele no Maranhão, após ser recebido com honras de ex-chefe de estado no dia 11 de dezembro de 1968, dois dias antes da edição do AI-5.
Em 1967, o general Dilermando Gomes Monteiro já acusava Sarney de proteger comunistas, conforme documentos da 10ª Região Militar levantados pela jornalista Regina Echeverria. O mesmo general Dilermando que comandava o 2º Exército quando foi assassinado o operário Manoel Fiel Filho. Sarney, como mostram os fatos, esteve sempre do lado oposto ao dos torturadores.
Agradeço sua atenção e espero que as imprecisões técnicas do artigo sejam devidamente corrigidas.
Marcelo S. Tognozzi
Secretário de Imprensa da Presidência do Senado
A tréplica de Luiz Cláudio Cunha
Meu caro Marcelo Tognozzi,
Eu, como todo mundo que te conhece, respeita tua figura como jornalista, como integrante da brava Associação Brasileira de Imprensa e como representante da ABI no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoas Humana (CDDPH). Imagino, portanto, todo o desconforto que te aflige, agora, com a missão impossível de defender o senador José Sarney como testemunha de defesa do coronel Brilhante Ustra.
Vou poupar meu amigo jornalista desse constrangimento e responder diretamente ao presidente do Senado Federal, para provar que não existem “imprecisões de ordem técnica” que mereçam “retificação” no meu texto publicado no Congresso em Foco (“Sarney e o torturador, Ustra e o presidente”).
Presidente Sarney, como diria Jack, o estripador – ou Ustra, o torturador –, vamos por partes, segundo a ordem de suas observações. A saber:
1. O presidente Sarney se vale do detalhe burocrático de que “não recebeu citação da Justiça para depor como testemunha de defesa do coronel Ustra”. Não recebeu ainda, presidente, mas receberá, na condição de testemunha de defesa arrolada pelo réu. A Justiça está citando primeiro as testemunhas da acusação. Depois, quando chegar a vez da defesa, Sarney terá o privilégio de falar bem de Ustra, por carta precatória, junto com outros três militares – os generais da reserva Gélio Fregapani Paulo Chagas, Raymundo Maximiano Negrão Torres e Valter Bischoff – e o ex-ministro e ex-senador Jarbas Passarinho.
2. Não é difícil supor que a testemunha Sarney falará bem do réu Ustra, pois não tem lógica nenhuma invocar a palavra de quem possa piorar a situação de um acusado na Justiça. Ninguém imagina que Sarney tenha sido arrolado sem a sua prévia anuência. A não ser que, além de torturador (sentença de 2008 da Justiça paulista), Ustra seja também mal-educado. Da mesma forma, não é fácil imaginar o que de bom poderia dizer à Justiça a testemunha Sarney sobre o coronel que virou símbolo da violência militar do regime que Sarney, como fiel militante da Arena (a sigla da ditadura), sempre defendeu.
3. Diante da repercussão nacional que envolve agora o seu nome com o do notório chefe do DOI-Codi da rua Tutoia, o maior centro de repressão da ditadura, o presidente Sarney informa repentinamente, só na véspera da abertura do processo em São Paulo, que “não irá comparecer porque se recusa a participar de uma farsa armada pela defesa de Ustra com o único objetivo de atrasar o processo em curso”. Subitamente, o presidente Sarney anuncia ao país que a defesa de Ustra é “uma farsa armada para atrasar o processo”. Afinal, o que aconteceu? O que transformou o defensor Sarney em acusador? Quem traiu quem? Sarney enganou Ustra? Ustra iludiu Sarney? Ou ambos estão engambelando a Justiça e a opinião pública brasileira?
4. A informação de que Sarney defenderá Ustra circula há muito tempo na Justiça e na imprensa. Desde 24 de agosto de 2010, quando o processo cível nº 583.00.2010.175507-9 desembarcou na 20ª Vara Cível do Fórum de São Paulo. Tanto que a jornalista Tatiana Merlino, sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, morto em 1971 após quatro dias de tortura no DOI-CODI comandado por Ustra, falou com insistência nos últimos meses denunciando a inesperada ligação entre o senador e o coronel. “É escandaloso o coronel Ustra ter como testemunha o ex-presidente José Sarney”, dizia a manchete de sua entrevista ao site do jornal Causa Operária, no último dia 11.
Apesar da contundência do noticiário, Sarney nunca veio a público para negar essa surpreendente condição, que ele agora diz rejeitar.
5. Sarney alega que esteve com Ustra “apenas uma vez”, em agosto de 1985, quando o coronel era adido militar da embaixada em Montevidéu e aguardava no aeroporto de Carrasco o então presidente da República em visita oficial ao Uruguai. Foi quando a ex-deputada Bete Mendes, ex-presa política, denunciou Ustra como seu torturador no DOI-Codi, em 1970. Sarney se apressou em anunciar à torturada que o coronel fora removido naquele mês da embaixada. Não era verdade. O próprio Ustra provou, em seu livro, “Rompendo o Silêncio” (1987), que o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, segurou seu emprego no Uruguai até dezembro de 1985, contrariando a palavra do presidente Sarney.
6. Em contato telefônico, a assessoria de Sarney completou sua contestação dizendo que em 1971, quando Merlino morreu sob tortura no DOI-Codi, Sarney “nem conhecia, nem sabia quem era Ustra”. Quarenta anos depois, o político de absoluta confiança do regime militar – ao ponto de ser nomeado governador do Maranhão num tempo em que o povo era impedido de votar – não pode alegar que desconhecia o que se passava nos bastidores do poder que ele sustentava politicamente como cacique da Arena. Se não sabia na época, Sarney certamente ficou sabendo depois o que representava a instituição do DOI-Codi e seu chefe mais notório, o coronel Ustra.
7. Sarney garante, agora, que não irá “louvar e enaltecer o maior ícone vivo da repressão mais feroz da mais longa ditadura”. Se não fará isso, o que dirá a testemunha de defesa de Ustra? A testemunha citada pelo coronel vai, ao contrário do que ele espera, acusá-lo? Aliás, o que pensa o presidente Sarney a respeito do DOI-Codi e de seu chefe mais ilustre, o coronel Ustra?
8. O presidente Sarney diz que não é camarada de Ustra e nunca manteve laços de amizade com ele. Então, o que explicaria o pedido de socorro do coronel, invocando a palavra de quem não o conhece, nem lhe tem amizade? Sarney seria a mais nova vítima de Ustra?
9. Sarney alega que os fatos, agora, mostram que esteve “sempre do lado oposto ao dos torturadores”. Que fatos, presidente Sarney? Quem são os torturadores que o senhor conhece ou pode relacionar? O que pensa o presidente Sarney, aliás, sobre a tortura e o aparato repressivo que sustentou a ditadura durante 21 anos? Ou os fatos estão protegidos pelo sigilo eterno que o presidente Sarney e seu sucessor, Fernando Collor, defendem para os documentos oficiais?
10. A partir desta quarta-feira, 27, começa em São Paulo o julgamento de um militar acusado pela tortura e morte de um preso político. O presidente Sarney, ao vivo ou por carta precatória, está relacionado pelo réu como seu defensor. Mais cedo ou mais tarde, ele será chamado a falar o que sabe e o que pensa sobre o militar acusado. Até prova em contrário, Sarney e Ustra estão lado a lado nesta causa, uma cumplicidade que estarrece a opinião pública brasileira. Essa não é uma simples “imprecisão técnica”. O presidente José Sarney deve à Justiça e ao país uma palavra clara, definitiva, sobre uma dúvida que atravessa a consciência nacional: afinal, de que lado o senhor está, presidente Sarney?
Luiz Cláudio Cunha
Jornalista
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