domingo, 6 de julho de 2025

CRÔNICA DO DIA: No Terreiro de Dona Sinhá

Na rua de paralelepípedo do bairro do Capim Alto, onde o cheiro de café coado se mistura com o perfume do manjericão, ergue-se um portão azul com uma estrela de cinco pontas entalhada na madeira. Atrás dele vive Dona Sinhá, 78 anos,coluna ereta,lenço branco, olhar de rio profundo,parteira de almas,benzedeira de corpo e palavra. 

O terreiro dela — chamado Tenda de Luz de Ogum Beira-Mar — começa onde terminam os muros da descrença. Todo sexta-feira à noite, antes que os sinos da igreja lá de cima toquem oito vezes, já se ouve o toque dos atabaques ecoando no breu, convocando os Orixás e espantando o preconceito com som.

Naquela gira, cada tambor conta uma história antiga, anterior à escravidão, anterior à dor. O toque de Ijexá sobe leve, como brisa de Iemanjá. O de Congo pulsa firme, como o passo de Xangô. Os filhos se alinham em branco, como quem vai pra guerra sem armas , só com fé.

Joãozinho, menino curioso de doze anos, costumava espiar do muro. A mãe, evangélica de carteirinha, proibia:

 - Esse povo é do demônio.

Ele não via nada além de flores, velas e abraços. Um dia, tomou coragem e entrou. Dona Sinhá olhou pra ele e disse:

— Saravá, meu filho. Seja bem-vindo. Aqui ninguém força nada. Mas ninguém sai ileso da luz.

Ele voltou na sexta seguinte. E no outra. E no outra.

Foi lá que conheceu Seu Zé Pelintra, malandro de chapéu branco e sapato engraxado, que falava em rimas e dava conselhos como quem serve um cafezinho forte: quente, direto e revigorante.

— Respeita teu caminho, moleque. O mundo já tá cheio de quem tenta apagar os rastros dos outros.

E conheceu também Maria Padilha, que cantava pontos com voz de trovão e cuidava das moças mal-amadas com banho de rosas vermelhas. E o velho Preto Velho, Pai Benedito, que chorava sem lágrimas e curava com a palma da mão e um galhinho de arruda.

A Umbanda ensinou Joãozinho sobre Orixás: Ogum, senhor da guerra justa; Oxum, dona das cachoeiras e dos sentimentos doces; Iansã, que comanda os ventos e não aceita injustiça calada.

Ensinou sobre obrigação: que a fé exige compromisso, não medo. E que acender uma vela pode ser tão forte quanto levantar uma bandeira.

Mas o que mais aprendeu foi que ser de Umbanda é ser de paz. Não é preciso gritar para defender a fé. Basta mantê-la acesa.

Num domingo, a mãe de Joãozinho foi procurá-lo no terreiro. Chegou de cara amarrada, mas saiu com os olhos marejados, depois que ouviu um ponto para Oxalá que dizia:

"Oxalá quando desce é pra curar,

Traz o pano branco e o amor pra ensinar."

A emoção da mãe de  Joãozinho aumentou quando cantaram o Hino da Umbanda:

" Refletiu a luz divina

Com todo seu esplendor

Vem do reino de Oxalá

Onde há paz e amor."

Naquela noite, não teve sermão. Só silêncio. Silêncio de quem entendeu que intolerância religiosa é ferida sem remédio — e que respeitar o axé do outro é também respeitar o próprio.

Desde então, Dona Sinhá diz que a Umbanda é feita de três coisas: fé, caridade e resistência. E que os Orixás dançam não para serem adorados, mas para lembrar que o mundo pode ser mais bonito quando aceita a dança de todos.

Lá dentro, personagens caminham entre o visível e o invisível:

Seu Marçal, o Ogã, é quem segura o tempo.

Com mãos grossas e jeito calado, ele toca o tambor como quem conta segredos antigos. Dizem que ele não fala muito porque os tambores falam por ele. Ogum caminha no som que ele solta, e ninguém ousa duvidar.

Clara, a filha de Oxum, chegou ali fugindo da vida. Morava na favela vizinha, apanhava do marido e da própria sombra. Um dia, entrou no terreiro pra assistir e nunca mais saiu. Hoje, gira com saia dourada e olhos brilhantes, distribuindo rosas e esperança.

Damião, adolescente tímido e negro como a noite sem lua, incorpora um Exu chamado Tranca-Ruas das Almas.

E foi ali, no corpo magro e hesitante de Damião, que Exu ensinou uma lição para todos:

— Eu abro caminhos... mas vocês é que têm que andar. A fé não é Uber, não.

No fim da gira, sempre vem Pai Benedito.

Curvado, fala devagar. Mas quando põe a mão nas costas de alguém, o peso da vida vira espuma.

— Tenha calma, minha fia... O tempo de Deus não é de relógio, é de axé.

E há os pontos. Ah, os pontos!

Canções que são preces com corpo.

Eles sobem ao céu com a força de mil pedidos, misturam língua de preto velho com gíria de malandro, ensinam com poesia aquilo que a ignorância teme.

Cada ponto é um livro cantado, uma aula sem quadro-negro,mas nem tudo são flores.

Certa vez, um vizinho jogou sal grosso no portão. Outro chamou a polícia dizendo que era "bruxaria". Dona Sinhá não se abalou. Acendeu vela pra Oxalá e disse:

— Deixa falar. A ignorância é cega e o preconceito tem medo do escuro. Aqui, a luz não se apaga.

E é isso que a Umbanda é: resistência amorosa.

Não se prega conversão. Não se vende salvação.

Se oferece acolhimento. Se lava a alma com folhas de guiné e palavras doces. Se canta para sarar o mundo.

Joãozinho cresceu. Virou pai de santo também. Herdou o atabaque e a calma de Dona Sinhá. E no seu terreiro, pintado de amarelo, tem uma placa que diz:

“Entre, traga sua dor. Aqui se cura com amor e ponto cantado.Aqui se dança com fé, se chora com dignidade e se canta com amor. Intolerância, aqui, não entra nem se vier de terno e gravata.”

Saravá!

Por José Casanova,
Professor, Jornalista e Escritor 
Membro da Academia Bacabalense de Letras 
Academia Mundial de Letras da Humanidade 
Tutor da Academia Marahense de Letras Infantojuvenil 



2 comentários:

  1. Tenho muito orgulho de ser quem eu sou ,eu sou da umbanda axé 📿🫰🏽

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  2. Tô no meu início parei tenho muita vontade de continuar mais ,tem muitas coisas q mim impede de continua ,a primeira ,e minha mãe ela não aceita ela diz q eu não tenho essas coisas comigo ,mais eu vejo escuto muitas coisas ,tenho minha vó Maria de Fátima dona do terreiro chamado Itamncua,ela fica em são Luiz do Maranhão no saviana ,chamada rua Maria da paz de melo ,todo ano tem festas muitos lindas lá ,tem as seção q pra quem pergunta pra quer server né ela ,e feita pra nós mesmo aprender muitas coisas

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