domingo, 27 de julho de 2025

CRÔNICA DO DIA: Julho das Pretas

 

A lona branca tremulava com o vento quente da tarde. O sol, feito artista ancestral, dourava a praça como quem reconhece o ouro que ali se reunia: mulheres negras em roda, em palavra, em permanência.

Sob o mastro do microfone, as cadeiras de plástico iam se preenchendo aos poucos. Não era um evento. Era um chamado. Era Julho das Pretas.

Ana chegou contrariada, puxada pela avó, Dalva. Os fones ainda pendiam do pescoço, mas algo naquela atmosfera , talvez o tambor, talvez as vozes firmes , a fez parar. O que acontecia ali arrepiava a pele como quem chama pelo sangue.

A primeira a falar foi Tainá, militante magra de olhos ardentes. Trazia no peito a inscrição da sua urgência:

"Nem recatada, nem do lar. De luta."

- Irmãs  - Disse ela, com voz de aço temperado em afeto  - Nossa existência sempre foi resistência, mas queremos mais. Queremos o direito ao descanso, à arte, ao afeto. Não apenas sobreviver. Queremos o bem viver. Se Tereza de Benguela, em pleno século XVIII, comandou um quilombo e um povo com coragem, não há nada que não possamos sonhar. Ela não apenas resistiu. Ela governou.

O nome de Tereza percorreu o espaço como uma brisa densa, espiritual.

No meio da plateia, uma senhora ergueu a mão. Usava turbante azul e tinha os olhos fundos como o mar de Ilha do Amor. Era professora Ivone, aposentada da rede pública, mas eternamente mestra.

 - O bem viver... começa quando deixamos de ser rodapé. Quando uma menina negra lê um livro e vê a si mesma como heroína. Quando Dandara dos Palmares não é só "a esposa de Zumbi", mas guerreira, estrategista, mulher que lutou até o fim. Reparação também é isso: reescrever o Brasil com a nossa tinta.

Silêncio. Não o silêncio do desinteresse, mas o da escuta profunda.

Ana, até então quieta, virou-se para a avó com uma dúvida que soava quase como uma dor:

- Vó... por que a senhora nunca me contou essas coisas?

Dalva sorriu com ternura, mas seus olhos tinham o peso do tempo:

-  Porque a minha geração aprendeu a correr primeiro. Falar depois. Mas hoje... hoje é tempo de ensinar a falar primeiro. Correr, só se for por gosto. Ou por liberdade.

No palco, subia agora Rosa. Turbante vermelho, voz rouca, corpo feito de arte.

- Quando pinto, minhas cores são heranças. Quando danço, Dandara dança comigo. Quando canto, Tereza me sopra palavra. O que fazemos aqui hoje não é homenagem: é continuidade.

Ela dedilhou um berimbau e o som ancestral atravessou a praça como um rio de memória:

“Pretas de julho, de janeiro, de sempre.

Se o mundo nos feriu com a história,

nós o curamos com memória.”

Ana gravou o poema no celular. Mais do que isso, gravou dentro de si. Gravou no corpo, no ouvido e na parte mais funda da alma.

Na volta pra casa, sem resistência, perguntou baixinho:

- Vó, no ano que vem... posso falar no palco?

Dalva apertou sua mão como quem passa um bastão invisível ,  uma chama antiga, um segredo que já não precisa se esconder:

- Pode, Ana. E deve. Porque julho é teu. E teu é o tempo de tudo mudar.

JOSÉ CASANOVA 

Professor, Jornalista e Escritor Membro da 

Academia Bacabalense de Letras 

Academia Mundial de Letras da Humanidade 

Tutor da Academia Marahense de Letras Infantojuvenil 

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