Bruce costumava preencher o mundo
com palavras. Elas lhe nasciam fáceis, como notas de um piano que ele também
sabia tocar. Era ator, e que ator! Daqueles que não apenas decoravam falas, mas
que as criavam com alma, bordando verdades nas mentiras dos palcos e das telas
de cinema.
Certa vez, um diretor dissera que
Bruce não representava; ela encarnava. Tornava-se rei, mendigo, assassino,
anjo. Mudava de pele com a mesma naturalidade que mudava de roupa. E fora
aplaudido de pé, não uma, mas incontáveis vezes, por multidões que acreditavam
em cada gesto seu.
Hoje, Bruce nem lembra que foi
ator.
Na poltrona da sala, ele encara uma
estatueta dourada com os olhos vazios de quem vê um objeto qualquer. O prêmio
que um dia representou o auge de sua carreira agora é só um peso bonito, um
enfeite sem nome.
A Afasia chegou como um ladrão
invisível. Roubou-lhe as palavras, depois os significados, por fim, as
lembranças. A doença não levou apenas sua linguagem. Levou sua história.
Agora Bruce luta com as sílabas,
tropeça nos nomes. Chama a filha de “moça”. A esposa de “aquela ali”. E quando
tenta dizer “bom dia”, sai algo como “dom
via”, e às vezes, nem isso.
-
Bruce, lembra desse prêmio? – Pergunda Linda, sua filha, sentando –se ao
lado no sofá.
Ele franze a testa. Toca a
estatueta com a ponta dos dedos, como quem apalpa a memória.
- É... é... bonito. – Diz com esforço, e sorri.
- Foi seu, pai. Você ganhou. Era o
melhor ator.
Bruce sorri de novo, mas o sorriso
é tímido, hesitante. Ele não sabe se acredita.
- Ator? – repete. – Eu... era?
Eu... fiz?
Clara segura sua mão:
- Fez. Muitos filmes. Peças. Um
monte de gente te aplaudindo. Você era incrível.
Bruce baixa os olhos. Parece
procurar palavras numa gaveta vazia.
- Eu... falo... bem?
Ela
hesita. Respira fundo:
_ Fala sim. – responde, com um nó
na garganta. – Às vezes demora... mas fala.
- Céu... azul.
- Isso, pai. Azul. Muito bem!
Bruce sorri, mais firme agora, como
se aquela pequena conquista fosse uma vitória sobre o vazio, mas logo a névoa
volta:
- Linda? – Pergunta.
- Sou eu pai
- Moça...bonita. – ele murmura,
como quem se desculpa por esquecer. Ela beija sua testa.
No canto da sala, a televisão exibe
um de seus antigos filmes. Bruce está lá, na tela, com voz firme e olhos
flamejantes, dizendo uma fala de Shakespeare. Ele não se reconhece.
- Quem é esse? - Indaga Bruce.
- É você. – Responde Linda.
Bruce observa por um tempo. A imagem do ator parece de outro mundo.
- Ele... fala... bem.
- Fala sim, pai. Era você, quando
as palavras moravam aqui – diz ela, apontando o peito dele.
Bruce leva a mão ao coração. Como
quem tenta sentir algo escondido ali dentro.
A Afasia chegou como uma maré que
engoliu a praia de suas palavras. Deixou conchas quebradas, memórias soltas,
sons sem sentido.
Bruce, o homem que encantou
plateias com sua voz, agora vice num mundo onde as palavras são labirintos sem
saídas. Onde o pensamento corre, mas a fala tropeça. Onde tudo o que sente fica
preso dentro, esperando, talvez, por um gesto que diga o que a boca não
consegue mais.
Mesmo assim, sua arte permanece.
Nos olhos, há ainda brilho. Nas mãos, um gesto involuntário que lembra uma velha cena. No corpo, o
vestígio de um tempo em que a linguagem era sua morada. E mesmo que Bruce tenha
esquecido que foi ator, a vida, essa teimosa diretora de cena, segue soprando
falas ao pé do ouvido. Algumas ele entende. Outras, responde com o olhar. E há dias em que
,por um instante, ele parece
lembrar:
- você disse que eu ... era bom?
- Era, Pai E ainda é.
Bruce sorri, sem saber exatamente
por quê, mas talvez nem tudo precise se dito para ser sentido.
JOSÉ CASANOVA
Professor, Jornalista e Escritor
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil







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