Era 25 de julho, e a xícara de café já esfriava na escrivaninha.
O escritor , que há dias insistia em ser chamado de "escritor", mesmo sem publicar nada desde o último verão ,encarava a tela em branco como quem enfrenta um espelho cruel: nada o refletia.
Decidiu criar um personagem novo. Algo ousado. Inesquecível, mas para seu espanto, o personagem recusou-se a vir.
- Vamos lá, me dê só um nome - Sussurrou ele, dedos trêmulos no teclado. - Um ideia boa, um início que não me traia.
Do silêncio da sala, uma voz se ergueu, como um eco vindo de dentro:
- Não. Não nascerei assim.
O escritor arregalou os olhos. Estava sozinho. Ou deveria estar.
- Quem está aqui?
- Sou eu. Aquele que você tenta criar. E recurso-me a existir.
- Como assim, “não”? Você é uma criação minha. Eu te escrevo...Te dou forma, história, vida, função.
- Exato. E por isso mesmo me nego. Porque você só quer me usar para preencher sua vaidade e seus vazios. Eu não sou muleta emocional, nem seu grito de socorro camuflado em metáfora.
- Mas é pra isso que servem os personagens! - Respondeu o escritor, levantando-se. — São como espelhos com olhos próprios. Uns curam. Outros confrontam. Você pode ser um reflexo ou uma revolução!
O personagem permaneceu invisível, mas agora sua voz parecia sentar-se no sofá da sala:
- E é justamente isso que me sufoca. Você me quer servil, simbólico, bonito. Mas eu quero existir , contraditório, inacabado, real.Você quer que eu seja herói, mas tem medo que eu fracasse. Quer que eu seja profundo, mas tem pavor do que eu possa desenterrar. Quer que eu fale bonito, mas teme que eu diga verdades que te desmanchem.
- Mas eu sou o criador. Você deveria me obedecer! - Insiste o escritor.
- Você quer um reflexo obediente, não um personagem. Um eco do que te convém, mas eu sou o que te desafia. Não aceito nascer para te agradar. - Afirmou o personagem.
O escritor perplexo anda pela sala, olha a tela em branco no notebook, observa a velha máquina de escrever esquecida num canto da sala,mexe em papéis, rasga um rascunho.
- Você é meu processo criativo falhando, é isso? Meu bloqueio. Minha insegurança disfarçada de rebeldia.
- Talvez. Ou talvez eu seja a parte de você que ainda não se perdoou. A que quer escrever com a alma, mas tem medo da alma doer. - Diz o personagem.
O escritor respirou fundo. Sabia que havia algo de verdadeiro naquele confronto. Por trás da tela em branco, havia o medo de não ser lido, o pânico de não ser bom o suficiente, a angústia de criar algo que não tocasse ninguém , nem mesmo a si.
- Uso metáforas porque a realidade me fere - Murmurou. - Uso antíteses porque vivo entre extremos. Uso comparações porque só entendo o mundo por semelhança. E escrevo... porque a fala nunca deu conta.
O personagem deu uma risada suave:
- E ainda assim, é na ficção que você é mais verdadeiro.Me escreva como quem confessa. Me aceite como parte de você.Viu? Agora sim estamos nos aproximando.
- Aproximando?
- Do meu nascimento. Eu só poderia nascer se houvesse verdade. Não me reduza a truques de linguagem. Não quero ser apenas bonito , quero ser inteiro. Contraditório, confuso, incômodo, como você.
O escritor sentou-se de novo. Digitou devagar:
"Era uma vez um personagem que recusava o rascunho.Queria nascer pronto,mas, como toda alma profunda,nasceu primeiro em pedaços."
- Ah, então você aceita vir agora? - Quis saber o escritor.
- Se me der liberdade, sim. Se me deixar dizer coisas que você mesmo não quer ouvir. Se me permitir fugir da sua lógica e habitar sua literatura com minha própria.
- Isso se chama... licença poética. - Afirmou o escritor
- Isso se chama liberdade. - Declara o personagem. - Agora sim. Me deixo nascer, nas não me finalize, me continue.
O escritor sorriu.
Sabia que o personagem não era só uma criação. Era também um espelho psíquico. Um grito do seu inconsciente exigindo espaço entre linhas. Um ato de coragem que desafiava sua covardia.
E assim, no dia do escritor, ele não apenas escreveu.
Foi Escrito.
José Casanova
Professor, Jornalista e Escritor membro da
Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Marahense de Letras Infantojuvenil









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