O consultório era pequeno, aconchegante, com brinquedos coloridos em um canto e um aquário silencioso em outro. A mãe, Ana Maria, chegou pontualmente, como sempre fazia. Trazia nos olhos o cansaço dos últimos meses — noites mal dormidas, perguntas sem resposta e o coração em suspense. Sentou-se na cadeira de couro e ajeitou a pequena Alice em seu colo. A menina balançava levemente o corpo, cantarolando baixinho uma melodia inventada, alheia ao mundo ao redor.
O médico, Dr. Henrique, entrou com a pasta nas mãos e um sorriso gentil. Sentou-se à frente delas com um cuidado quase ritual. Por alguns segundos, apenas o som do filtro do aquário preenchia a sala.
— Ana, antes de tudo, quero dizer que você é uma mãe admirável — começou ele, com a voz serena. — A forma como observa, anota, cuida... tudo isso fez muita diferença.
Ela sorriu, tensa.
— Doutor, eu só quero entender. Eu... sinto que tem algo, mas ao mesmo tempo, ela é tão... ela.
Dr. Henrique respirou fundo. Abriu a pasta com cuidado, como quem desembrulha uma notícia.
— Nós fizemos uma série de avaliações, conversamos com terapeutas, com psicopedagogos, e... tudo indica que a Alice está dentro do espectro autista. Especificamente, com um grau leve a moderado de suporte.
Ana não respondeu de imediato. A palavra “autista” reverberou dentro dela como um eco em caverna funda. Imaginou os aniversários onde Alice se escondia debaixo da mesa, os dias em que recusava o toque, os momentos em que parecia mais conectada com as luzes do teto do que com a voz da mãe.
— Isso... isso é definitivo? — perguntou, a voz falhando.
— Não é uma sentença. É uma porta. Um nome para algo que vocês já convivem há algum tempo. E agora, com esse nome, podemos construir caminhos. Existem terapias, fonoaudiólogos, psicólogos, apoio escolar... E existe o TEA — Transtorno do Espectro Autista — como uma forma única de ser no mundo, não como um erro a ser corrigido.
Ana segurou a mão de Alice, que agora observava as bolhas no aquário com fascínio. Uma lágrima silenciosa escorreu. Não de tristeza — ou não só —, mas de alívio também. Havia algo concreto agora, ainda que difícil. Não era “culpa dela”. Não era “falta de educação”. Não era “frescura” como diziam alguns vizinhos .
O médico então, com um olhar mais contido, acrescentou:
— Ana, eu preciso dizer que a sua reação... é rara. A maioria dos pais não aceita de imediato. Muitos se revoltam, gritam, negam, tentam culpar alguém. Alguns agridem verbalmente, e às vezes até fisicamente ,o profissional da saúde. Outros mergulham em um luto silencioso que vira depressão. É difícil ouvir esse diagnóstico. É como se arrancassem o futuro idealizado da criança e entregassem outro, cheio de interrogações.
Ana assentiu, com os olhos fixos em Alice.
— E eu... o que eu faço agora? — murmurou.
— Você continua sendo a mãe dela. Mas com mais apoio. Eu vou encaminhar vocês para o CAPSi, o Centro de Atenção Psicossocial Infantil. Lá, vocês terão uma equipe multidisciplinar para caminhar junto. Também vou te passar o contato de uma rede de mães. É importante não estar sozinha.
Nos dias seguintes, Ana chorou no chuveiro. Leu tudo que pôde. Desmarcou festas que Alice não suportaria e aprendeu a celebrar vitórias invisíveis para o mundo: um abraço espontâneo, um olhar nos olhos, uma palavra nova. Tornou-se militante sem querer, e descobriu que amor também é aprendizado.
E, entre palavras e silêncios, mãe e filha seguiram. Não como antes,mas como sempre deveriam ter sido: juntas, compreendidas, inteiras.
José Casanova é Professor, Jornalista e Escritor
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Marahense de Letras Infantojuvenil
Incrível Crônica! Muitos pais estão neste lugar. Buscando respostas e há tanta desinformação no mundo. Uma sociedade despreparada para acolher esses seres que vieram para ofertar o amor e são tão, tão incompreendidos. Parabéns! 👏
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