terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

CRÔNICA DO DIA - RACISMO: a insistência da ignorância

 

No estacionamento movimentado de um supermercado famoso na Terra da Bacaba, onde as cores e os sons dos atabaques africanos da cidade se misturam, um episódio revelador de nossa realidade se desenrola, como um retrato em negativo de nossa sociedade. Uma professora universitária, negra, chamada Núbia Reis, aguarda pacientemente ao lado de seu carro. Seus pensamentos, talvez mergulhados em questões acadêmicas, são interrompidos por uma voz estridente.

Uma mulher branca, de aparência distinta, se aproxima. Tem todos os traços físicos de uma cigana, talvez com “olhar obliquo e dissimulado”, imortalizada na obra de Machado de Assis. Seus gestos carregam a certeza de quem nunca foi questionado. Ela insiste que a professora cobre panelas, que poderia cobrar no cartão de crédito. A professora, educada e firme, explica que não poderia comprar no momento, apenas aguardava sair no seu  carro.

A mulher branca não aceita a resposta. Sua insistência se transforma em agressão verbal. Ela chama a professora de "negra", com um tom pejorativo que carrega séculos de discriminação. Ela a chama de "fedida", numa tentativa vil de associar a negritude a algo sujo e indesejável. E, por fim, ela a chama de "macaca", utilizando o termo racista mais grotesco, herança de uma época em que os negros eram tratados como animais.

O que sente uma pessoa vítima de racismo? Só que  sofre na pele  e no coração o sabe. Núbia é de fato uma bela mulher negra e empoderada, representa muito bem as mulheres quilombolas de São Sebastião dos Pretos, Piratininga, Catucá  e tantas outras comunidades remanentes de quilombo reconhecidas ou não  neste país. Núbia traz na veias o sangue de Dandara, a força de Zumbi dos Palmares, a energia do tambor de crioula de dona  Maria de Geraldo, patrimônio imaterial de nossa cultura,  que rufa na madrugada espetando o mal olhado do preconceito e da ignorância.

Esse episódio, embora lamentável, não é isolado. Ele se repete pelas ruas do Brasil a fora. É o reflexo do racismo estrutural que permeia nossa sociedade nas escolas, repartições públicas e privadas e até nas instituições que deveriam promover nossa proteção e  garantir nossos direitos. Um racismo que se disfarça em pequenas atitudes do cotidiano, mas que tem raízes profundas em nossa história.

No Brasil, um país construído sobre as costas dos ancestrais escravizados, o racismo se manifesta de diversas formas. As comunidades quilombolas , que lutam pela preservação de sua cultura e identidade, muitas vezes são em sua maioria marginalizadas e esquecidas. Ele está presente na educação, onde o racismo estrutural se manifesta na falta de representatividade e nas barreiras enfrentadas pelos estudantes negros. É urgente e necessário a formação de professores antirracistas para desmitificar a tez da educação.

O racismo também se faz presente no futebol, nas artes, nas relações de trabalho, e, de forma ainda mais cruel, na violência contra a mulher negra. Mulheres como Núbia que são vítimas de um sistema que as coloca em uma posição de vulnerabilidade, onde sua cor de pele as torna alvo de preconceito e discriminação.

Diante desse cenário, iniciativas como a União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) se tornam ainda mais importantes. Essa entidade luta incansavelmente contra o racismo, buscando promover a igualdade e a justiça social.  Equidade de oportunidade para todos através de políticas publicas que garantam os direitos humanos e fortaleçam a democracia é fundamental na construção de uma nação livre, igualitária e soberana.

As consequências do racismo são devastadoras. Ele gera traumas, perpetua desigualdades e limita o potencial de toda uma população. Por isso, é fundamental que cada um de nós se engaje nessa luta. Precisamos reconhecer nossos privilégios, combater os estereótipos e construir uma sociedade mais justa e inclusiva para todos. Enquanto perdurar o preconceito, não podemos falar em consciência humana, mas fortalecer a consciência negra independente do percentual de melanina que temos em nossos corpos

Quanto a professora Núbia, agora mais do que nunca, precisa de nossa solidariedade e apoio, a mulher branca que a agrediu verbalmente precisa de educação, empatia e consciência de seus próprios preconceitos. Pois só assim poderemos, juntos, desconstruir as estruturas do racismo e construir um futuro onde a cor da pele não defina o valor de uma pessoa.

Ubuntu!

 Por José Casanova
Professor, Jornalista e Escritor membro da 
Academia Bacabalense de Letras

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