sexta-feira, 15 de agosto de 2025

CRÔNICA DO DIA: Quem matou Odete Roitman?

    Era fim de 1988. O país ainda engatinhava na democracia, o Plano Cruzado já não segurava mais o preço do feijão, e o noticiário político se misturava com as fofocas de novela. Acima de qualquer crise, de qualquer manchete, havia uma pergunta que atravessava o Brasil como um mantra coletivo: quem matou Odete Roitman?

    Em Bacabal, o calor grudava na pele, as grilos chiavam, e nas calçadas, em frente às casas de porta aberta, o assunto era só um: quem matou Odete Roitman?

    No mercado da Rodovaiári, Dona Raimunda, enquanto escolhia tomate, cochichava para a vizinha:

    - Foi o Marco Aurélio, pode escrever. Homem rico não presta, minha filha.

    A vizinha retrucava:

    - E tu acha que rico vai sujar a mão? Isso foi coisa de mulher, mulher vingativa.

    Foi numa noite de Natal, entre o cheiro de peru e farofa, que a vilã caiu no chão, alvejada por três tiros. A cena interrompeu a digestão do brasileiro. O silêncio que se seguiu em cada sala de estar não foi só por respeito à personagem: foi perplexidade pura. Odete, a toda-poderosa, a senhora de fala afiada que não poupava nem os próprios filhos, agora jazia sem vida. E ninguém sabia quem puxara o gatilho.

    Naquela época não tinha Whatsapp , mas a fofoca corria mais rápido que mensagem de áudio, seja na na Praça Santa Terezinha , na feira da rodoviária ou no cais do Mearim, o mistério já havia atravessado todas as fronteiras. No mercado, as atendentes especulavam enquanto passavam o troco:

    - Foi o Marco Aurélio, só pode…

    - Nada, menina, aquele playboy não tem coragem.

    Nos consultórios médicos, enquanto o estetoscópio buscava batimentos, a conversa escapava:

    - O senhor respira fundo… mas e aí, doutor, quem o senhor acha que matou a Odete?

    No bar do Seu Chico no Bairro Trizidela, a disputa esquentava mais do que a cachaça no copo:

    - Aposto minha bicicleta que foi a Maria de Fátima! - Dizia Zé Maria, batendo na mesa.

    - Pois eu boto meu radinho de pilha contra a tua bicicleta: foi o César! – Respondia Tonico, convicto

    E o bar inteiro gargalhava, porque todo mundo já tinha perdido alguma aposta de novela naquela vida.

    Até no confessionário, Frei HEermano e fiel interrompiam a ladainha dos pecados para palpitar sobre o crime fictício.

    - Padre, pequei. Roubei galinha do vizinho...

    - Reze três Ave-Marias e me diga logo: o senhor acha que foi quem?

    E o fiel, sem titubear:

    - Foi Leila, padre, mas não espalhe, viu?

    O Brasil vivia em suspense. O mistério atravessou o réveillon, brilhou junto às serpentinas do Carnaval, e resistiu firme ao calor insuportável de janeiro. Cada personagem era apontado como suspeito. Havia até bolões em sindicatos, clubes e repartições públicas. Quem acertasse o assassino poderia levar uma garrafa de cachaça, uma galinha assada ou, no mínimo, o título de mais vidente da turma.

    As crianças brincavam de "detetive da Odete" nas ruas de terra do Bairro da Areia. Cada uma escolhia um personagem suspeito. A disputa era séria: quem pegasse o papelzinho escrito “Leila” guardava o segredo como se fosse senha de cofre.

    Os autores, sabidos, plantaram armadilhas. Gravaram finais diferentes, deixando atores e atrizes igualmente no escuro. Até Beatriz Segall, intérprete da própria Odete, circulava pelas entrevistas sem saber quem a teria mandado para o além. O segredo era guardado a sete chaves na Globo, como se fosse um segredo de Estado.

    E então, numa sexta-feira abafada de janeiro de 1989, o Brasil parou. Pontos de ônibus ficaram vazios, o comércio baixou as portas mais cedo, e até as missas de intenção atrasaram alguns minutos. O país inteiro queria assistir ao capítulo final.

    Eis que surge a revelação: Leila. Não Marco Aurélio, não Maria de Fátima, nem César. A elegante Leila, de olhos fixos e feridos, confundira-se na escuridão. Mirava em Maria de Fátima, a rival que lhe roubava o marido, mas a bala encontrou Odete, que passava pelo mesmo jardim. Ironia fina da teledramaturgia: a mulher que controlava tudo, que fazia e desfazia destinos, tombou por um engano doméstico.

    O impacto foi tamanho que, no dia seguinte, os jornais dividiram espaço entre a política nacional e a revelação da novela. Alguns colunistas arriscaram comparações sérias: “O mistério de Odete Roitman diz mais sobre o Brasil que a Constituição de 1988”, exageravam. Não era de todo mentira: afinal, durante semanas, fomos um povo inteiro unido por uma pergunta única, como se fôssemos uma imensa plateia sentada no mesmo sofá.

    Na sala de Seu Zé, silêncio. Na cozinha de Dona Maria, a panela de arroz queimou. No bar do Seu Chico, um copo caiu da mão de tanto espanto.

- Eu não disse? - Berrou Dona Raimunda, vitoriosa. - Mulher não perdoa, não!

- Pois eu perdi a bicicleta… - Lamentou Zé Maria, sob risadas gerais.

    Passadas décadas, ainda se fala no assunto, principalmente agora com o remake da novela.  "Quem matou Odete Roitman?" deixou de ser só uma dúvida sobre novela e virou metáfora para todo enigma sem resposta. Hoje, usamos a expressão diante de escândalos políticos, de crimes mal resolvidos ou até quando alguém rouba a comida da geladeira. A força dessa pergunta está no fato de que ela nos lembra de uma época em que a televisão conseguia segurar um país inteiro na beira do sofá, o coração aos pulos, esperando pelo próximo capítulo.

    E assim, Odete Roitman ,  que caiu por engano, entre tiros que não eram para ela ,  acabou vivendo para sempre. Não nas telas, mas no imaginário coletivo, como um mistério eterno. Porque, no fundo, mais do que quem matou Odete, o que nunca morreu foi o fascínio por uma boa história bem contada.

    Quanto a Bacabal foi dormir naquela noite com a alma leve. Não pela justiça feita, mas pelo alívio de, finalmente, ter resposta para a pergunta que atravessara feiras, igrejas, filas de banco e até o confessionário: quem matou Odete Roitman?

    O crime era de novela, mas a fofoca foi real. E até hoje, quando alguém quer saber quem roubou a galinha, quem não pagou a dívida no fiado ou quem comeu o último pedaço de bolo no aniversário, a pergunta ecoa, reinventada:

-  Rapaz… será que foi tu  leitor , que matou a Odete?

José Casanova
Professor,Jornalista, Escritor e Cronista membro da
Academia Baabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil






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