A fumaça do incenso misturava-se ao cheiro de terra molhada. Era início da noite no beco do Sapopemba, zona leste esquecida do mapa emocional do Brasil. A quebrada ainda fervia, não de esperança, mas de sobrevivência. E foi lá, entre vielas marcadas por abandono e paredes com grafites de leões, que eu conheci Ed Marley,ou melhor, que fui apresentado ao Papa do Reggae.
Ele chegou como quem não pisa no chão, mas dança sobre ele. Alto, retinto, olhos de fogo e paz, vestindo um manto de pano cru com estampa verde, amarela e vermelha. Os cabelos rastafári desciam como cipós sagrados, cada fio um capítulo da história negra que não nos contaram livros didáticos.
- Irmão, tá pronto pra escutar o que a Babilônia tenta calar?- Perguntou ele, acendendo uma vela na calçada onde não passava ônibus há semanas.
Sentei ao lado dele, no cimento ainda quente do dia. Na pequena caixa de som, tocava Burning Spear. A batida era lenta, sincopada, como o coração cansado dos que nunca param. Ed fechou os olhos e começou a falar. Não era um sermão, era um sopro de verdade.
- Aqui, meu chapa... o povo vive, mas não se sente vivo. O preto acorda cedo, limpa o chão dos outros, cozinha a comida dos outros, constrói a casa dos outros... e volta pro barraco com a barriga vazia e a alma furada. A gente não é brasileiro. A gente é "do Brasil", mas o Brasil não é nosso. Sacou?
Concordei, com o peito apertado. Uma senhora do lado, Dona Judite, vendia chá de boldo com um cartaz escrito à mão:
“Para curar o que o SUS não vê”.
Ela olhou pra Ed como se visse um santo:
- Esse menino é profeta. Desde pequeno, já fazia batuque com os baldes da minha lavanderia. Falava de Bob Marley, de Peter Tosh, de um tal de Jah. Agora, virou guia desses meninos perdidos.
Ed Marley sorria sem dente de ouro, mas com brilho nos olhos. A religião dele não era dessas de púlpito e condenação. Era o rastafarianismo, fé de resistência e conexão com o divino africano, com o leão de Judá, com a Etiópia ancestral. A Bíblia dele era feita de disco de vinil e fumaça de ganja cerimonial.
- O Reggae, parceiro, não é só som. É portal. É respiro. É como se Jah sussurrasse no ouvido da gente que ainda dá. Que a Babilônia não venceu. É Roots, sacou? Raiz. A gente escuta e se lembra que tem um passado, uma cultura, uma força que o sistema tenta podar.
O som mudou para Jimmy Cliff. Uma criança apareceu com uma camiseta do Cidade Negra, cantando desafinado “Firmamento”. O Ed bateu palmas, sorriu e falou baixo, como quem compartilha um segredo:
- Aqui no Brasil, os pretos do reggae são invisíveis duas vezes. Primeiro por serem pretos. Depois por serem do reggae. Não somos nem samba, nem funk,nem MPB. Somos estrada de terra. Somos poeira do deserto. Somos o grito abafado nas favelas, mas tem gente que ouve. Como o Natiruts, o Edson Cordeiro... esses irmãos aí, tentando manter a chama.
A noite avançava como policial sem mandado. Mas ali, naquele pedaço de mundo esquecido, havia resistência em cada nota musical, em cada trancinha infantil, em cada panela no fogo da lenha. Ed não cantava. Ele invocava.
- O Roots fala de dor, mas também de fé. Fala da Jamaica, mas serve pra Sapopemba, pro Complexo do Alemão, pra Ilha de Deus, lá em Recife. Fala da identidade que quiseram roubar, mas que vive em nós. Porque, enquanto a gente dançar, irmão... a Babilônia não leva tudo.
Foi aí que surgiu Rodrigo Vale, terno apertado, celular vibrando no bolso, óculos escuros à noite. Era negro também, mas falava como se não fosse. Ex-morador do bairro, agora consultor de "responsabilidade social" numa empresa de bebidas.
- Ed... ainda com essa pregação? O mundo não muda com música. Muda com diploma e CPF limpo. Disse, encostando no poste, rindo com desdém.
Ed sorriu. Não como quem concorda. Como quem perdoa.
- Irmão Rodrigo, tu fala como se tivesse saído da favela,mas a favela ainda não saiu de ti. Tá no teu medo. Na tua pressa em parecer o que não é. Eu falo de fé. Você fala de meta.
- Fé? Rastafári? Isso é folclore, Ed. Gente como nós precisa ser prático. Reggae não paga aluguel.
Ed Marley se levantou. Pegou uma pedra e desenhou um símbolo etíope na poeira do chão.
- Babilônia te treinou direitinho, mano. Te deu gravata e te fez odiar tua raiz. A raiz, Rodrigo... ela não some. Ela apodrece ou floresce. E você ainda tá escolhendo
No fundo da viela, uma mulher chorava em silêncio. Era Naiara, grávida de oito meses. E naquela barriga morava Zion, o menino que não queria nascer.
- Ele se recusa... - sussurrou ela. - Já passou da hora. Os médicos dizem que tá tudo certo, mas ele não quer. Como se soubesse o mundo que espera por ele.
Rodrigo deu de ombros. Ed se aproximou devagar e encostou o ouvido na barriga da moça.
- Esse menino é espírito antigo. Sabe das dores, dos tiros, da ausência do pai, da humilhação na escola, da carteira assinada que nunca chega. Mas também sente que aqui tem música, tem fogo, tem dança, tem leão. Tem Reggae.
- Reggae não salva ninguém, Ed. - Interrompeu Rodrigo, seco.
- Mas lembra quem a gente é, Rodrigo. E isso é o primeiro passo pra salvação.
A noite avançava como policial sem mandado. Mas ali, naquele pedaço de mundo esquecido, havia resistência em cada nota musical, em cada trancinha infantil, em cada panela no fogo da lenha. Ed não cantava. Ele invocava.
- O Roots fala de dor, mas também de fé. Fala da Jamaica, mas serve pra Sapopemba, pro Complexo do Alemão, pra Ilha de Deus, lá em Recife prá Trizidela, lá em Bacabal. Fala da identidade que quiseram roubar, mas que vive em nós. Porque, enquanto a gente dançar, irmão... a Babilônia não leva tudo.
E então, Zion se mexeu. Como quem ouve um tambor pela primeira vez. O ventre de Naiara vibrou com uma batida que parecia compassada com o baixo de Jimmy Cliff na caixa de som. Ed sorriu.
- Ele vai nascer amanhã. Vai vir ouvindo Reggae.
Rodrigo olhou aquilo tudo em silêncio. Pela primeira vez, sem piadas. O celular parou de vibrar. E ele, que nunca acreditou em nada que não desse lucro, teve vontade de chorar. Ou de cantar. Ou de voltar a ser um menino que dançava na laje, antes do terno, antes do medo.
Então, ele fechou os olhos. O som agora era Toots and the Maytals, com aquele groove que faz até o sofrimento querer sambar. A lua apareceu entre os prédios rachados, e um silêncio respeitoso envolveu a roda. Era como se todos estivessem, enfim, ouvindo.
Naquela noite, entendi que o Reggae não é só um gênero musical. É o último refúgio de um povo que cansou de esperar. Ed Marley não era artista. Era griô, era farol, era tambor batendo contra o esquecimento.
E quando me despedi, ele me olhou de lado e disse:
- Escreve isso aí, irmão, mas escreve com alma. Porque o Reggae não é pra vender. É pra viver.
Como escritor, compreendi que há personagens que não querem nascer, porque já existem em nossa consciência.
JOSÉ CASANOVA
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