Eu estava na segunda fileira, caderno aberto e
caneta na mão. O auditório da Universidade de Bacabal estava cheio, e a
sensação era de que todos aguardavam algo especial. Afinal, não era todo dia
que o professor doutor Augusto Cabalau, referência em neurologia, vinha à nossa
universidade.
Estudantes de medicina, enfermeiros, psicólogos e
curiosos ocupavam cada fileira de cadeiras azuis, aguardando o início da
palestra do Neurologista renomado, pesquisador respeitado e autor de livros
referência, Augusto era conhecido também por sua habilidade rara: transformar
ciência em narrativa, sem perder a precisão dos dados.
O cheiro de café perfumava o ambiente emquanto o
barulho da chuva lá fora trazia o aroma de terra molhada. No palco, ele ajeitou
os óculos, respirou fundo e se aproximou do microfone. Ele começou a palestra
com a firmeza de sempre.
- Boa noite, meus amigos. Hoje falaremos sobre um
tema que, infelizmente, não está apenas nos livros, mas também nas
estatísticas: o Acidente Vascular Cerebral, o AVC.
Enquanto
projetava os primeiros slides, sua fala desenhava números e conceitos com
clareza: o AVC é uma das principais causas de morte no Brasil e também de
incapacidades permanentes. Explicava que a doença se divide em dois tipos: o
isquêmico, quando há obstrução de um vaso, e o hemorrágico, quando ocorre o
rompimento.
Explicava os números assustadores do Acidente
Vascular Cerebral, os tipos, os sintomas. A clareza dele impressionava, parecia
que transformava dados em histórias.
De repente, percebi algo estranho. O professor
levou a mão à cabeça, como quem tenta afastar uma tontura. Sua voz falhou, o
controle escorregou dos dedos. O sorriso que ele tentou esboçar veio torto. e
desfez em uma assimetria dolorosa de assistir. Tentou prosseguir:
- Os sintomas… são… - As palavras saíram enroladas.
-
Professor, está tudo bem? - Ouvi
uma colega perguntar, a voz carregada de susto.
Dois alunos ajudaram a apoiar o professor, que,
sentado na beira do palco, lutava contra a confusão.
- Professor, me escuta? Consegue apertar minha
mão? Perguntou um deles.
- Hhh… -
Augusto tentou articular, mas a fala estava comprometida.
O silêncio tomou conta do auditório. A cena que
até então era apenas teoria nos livros se materializava diante de nós. Uma
residente correu para o palco e diagnosticou em voz alta:
- É um
AVC! Precisamos agir rápido!
Corremos para ajudá-lo. Eu mesmo segurei sua mão.
- Professor, aperta aqui! Consegue me ouvir?
Ele tentou falar, mas a voz veio arrastada, quase
incompreensível. Aquilo me gelou por dentro. O mestre que sempre falara sobre
rapidez no atendimento agora dependia dela para sobreviver.
Enquanto a ambulância era chamada, meus olhos
caíram no telão. O último slide permanecia lá, parado, como uma ironia cruel:
“Prevenção: controlar a pressão, alimentação
saudável, exercícios, evitar cigarro e álcool.”
Era como se o professor continuasse a nos dar
aula, mesmo sem voz.
Quando a equipe de resgate chegou, o silêncio no
auditório foi cortado pelo barulho da maca sendo movimentada. Vi o professor
sair pela porta, e confesso que me senti pequeno diante da fragilidade humana.
No hospital, passou pelo protocolo de
atendimento. Tomografia, exames, medicação adequada. Foi estabilizado. A
notícia trouxe alívio a todos: não havia sequelas graves.
Dias depois, para nossa surpresa, ele voltou.
Entrou no mesmo auditório, um pouco mais lento, mas vivo, firme, corajoso. A
fala estava mais lenta, mas firme. Ao entrar, foi recebido de pé, com aplausos
que misturavam emoção e respeito.
- Eu vivi
na pele o que sempre ensinei. - Disse, pausadamente. - O AVC não escolhe hora, nem lugar. Eu que o
diga., mas prevenir é escolha nossa. Esse é o maior aprendizado que posso
deixar a vocês. Guardem isso.
O auditório permaneceu em silêncio por alguns
segundos, até que os aplausos explodiram, mais intensos que antes. E naquela
noite, cada estudante saiu dali com a certeza de que aprendera mais do que
técnicas ou estatísticas. Aprendera sobre fragilidade, urgência e cuidado.
O professor tinha razão: às vezes, a vida escreve
suas lições com letras de susto.
Naquele momento, percebi que não era apenas
medicina que estávamos aprendendo. Era sobre a vida, sobre limites, sobre
responsabilidade com o próprio corpo. Foi a aula mais dura e, ao mesmo tempo, a
mais verdadeira que já tive.







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