Diziam que o rio Mearim guarda segredos no fundo de suas águas pardas. Segredos antigos, que murmuravam entre os redemoinhos e as pedras cobertas de limo. Maria do Carmo, filha de Dona Quitéria do quilombo Piratininga nunca soube ao certo se acreditava nessas coisas, mas sempre as ouvia.
Era uma mulher feita de luta e silêncio. Pele retinta, olhos grandes e um cabelo crespo que herdara de sua bisavó africana. Crescera ouvindo os pontos de umbanda baixinho, nos terreiros escondidos da mata, mas ultimamente vinha se achegando à Igreja do Pastor Elias, o novo templo neopentecostal da Trizidela, que prometia libertação de todo mal, incluindo os “encostos dos antepassados”, como o Pastor gostava de dizer no púlpito, com voz grave e camisa encharcada de suor.
- O passado precisa morrer pra Cristo viver em vocês! - Bradava ele, enquanto os fiéis gritavam “Amém!” e “Glória!”.
Maria do Carmo ouvia tudo com o coração dividido. Algo naquelas pregações a fazia estremecer. Não era apenas o poder da palavra, mas o desejo, quase infantil , de renascer, de ser aceita, de ser salva.
- Irmã, você tem um chamado especial, Disse o Pastor Elias, numa tarde, após o culto. - Deus quer te usar, mas precisa se libertar dessa herança maldita.
Ela aceitou. Calada, mas seus olhos se encheram d’água.
Dias depois, decidiu se batizar.
O batismo foi marcado para um domingo. O sol escaldava o terreiro de areia branca. A comunidade se aglomerava na beira do Mearim. As águas, calmas, pareciam esperar.
Maria do Carmo vestia uma túnica branca, singela. Estava linda, embora inquieta.
- Pronta pra nascer de novo? - Sussurrou Elias, sorrindo.
Ela quis responder, mas algo em sua garganta pesava como pedra. Desceu com ele até a água, que subia fria até a cintura. A congregação cantava salmos. O pastor ergueu o braço:
- Maria do Carmo, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
E mergulhou-a no rio, mas quando ela emergiu…
Não era mais apenas Maria do Carmo. Seus olhos estavam cerrados, mas um sorriso misterioso se abriu em seus lábios. Seus braços se ergueram lentamente, como em dança. O corpo tremia. A água parecia vibrar em torno dela.
- Êpa, Oxum! - Gritou uma voz entre os presentes, quebrando o silêncio.
Era Mãe Arlinda, velha ialorixá do quilombo, que observava tudo de longe, em silêncio. Caminhou até a beira do rio e tirou o lenço da cabeça.
- Essa não é possessão, Pastor Elias. É presença. Presença de Mãe Oxum.
O pastor recuou, confuso. Murmurava orações, tentando expulsar o “demônio”,Mais Maria, ou Oxum , falava com a voz doce e firme:
— Eu estava aqui antes de vocês chegarem. Eu estava nas águas, nas mãos da avó que a embalava com cantigas. Estava no ouro do ventre, no mel do acarajé. Estava no tronco, no navio negreiro, nas amarras da corrente. Essa aqui é minha protegida. Epa, reabram os ouvidos, pois a ancestralidade falou.
Um silêncio pesado caiu sobre todos.
- Isso é feitiçaria! - Gritou alguém.
- É heresia! - Gritou outro.
Mãe Arlinda caminhou até Maria e a envolveu em seu pano amarelo. A cor de Oxum.
- Racismo também se disfarça de fé, Pastor - Disse ela, firme. - Vê-se Deus em tudo, menos quando Ele dança com nossos ancestrais. Vê-se o diabo em tudo que é nosso, mas essa menina é filha da água doce. Filha do amor, da beleza e da sabedoria. Não é o Senhor que vai apagar isso.
Maria abriu os olhos, lentamente. Já não tremia, mas sentia em si uma força que nunca soubera nomear. Pela primeira vez, estava inteira.
Desde aquele dia, ninguém mais a chamou de “irmã” na igreja, mas no quilombo, ela passou a ser chamada de Mãe D’Água, e foi ali que Maria do Carmo compreendeu o que a fé podia ser: um encontro, não um apagamento.
E toda vez que passava à beira do Mearim, escutava os sussurros do rio. Agora, não duvidava mais.
Era Oxum quem cantava.A ancestralidade falou mais alto.
José Casanova
Professor, Jornalista e Escritor membro da
Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Marahense de Letras Infantojuvenil









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