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domingo, 7 de dezembro de 2025

CRÕNICA DO DIA : "Praça " de Justiça & Cidadania

 

            Dona Ana Raimunda viera do quilombo São Sebastião dos Pretos exclusivamente para participar da 5ª edição da Praça de Justiça &  Cidadania, antes de entrar no carro caminhou até o centro da comunidade, onde era possível ver a escola, o Salão de Terecô e o pequeno museu do quilombo que guardava  correntes, panelas e outros objetos centenários provas palpáveis que seus bisavós foram escravizados. Participar da “Praça” de  Justiça & Cidadania lhe trazia um sentimento de esperança com cheiro de reparação e tempero de cidadania.

Dizem que toda praça carrega conversas guardadas nas árvores. Naquela semana, na Universidade Estadual do Maranhão em Bacabal, uma praça aprendeu a falar de Justiça, e não daquela que fica trancada em gabinetes, mas da que senta debaixo de tenda, olha no olho e pergunta: “em que posso ajudar?”.

A ideia nasceu longe dali, nos corredores dos tribunais, pelas mãos do Ministro Carlos Pires Brandão, ainda quando era desembargador no TRF1. Imaginou que Justiça não devia ser ponto fixo no mapa, mas estrada. E estrada, como sabemos, sempre chega onde a cidade costuma virar silêncio. Pois chegou.

Logo cedo, dona Ana Raimunda apareceu com o passo miúdo e a certeza grande: trazer um documento não é burocracia, é existência. Afinal, algumas coisas só começam oficialmente depois de um RG.
             
Vim ajeitar esse papel.-   Disse ela,  segurando o registro e ajeitando o vestido, como quem organiza a própria história..  -  Fui bem recebida. Que bom, né?

Ela sorriu como quem ajeita uma história antiga. Aquele pedaço de papel seria chave para portas que antes ela apenas empurrava timidamente.

Ao lado, Joana do Carmo, agricultora do Piratininga, balançava a cabeça concordando com o próprio pensamento:
            -  Tem oportunidade que se perde se a gente não vem logo. RG, gente pra ouvir… tá maravilhoso. - Repetiu, meio espantada com a naturalidade do atendimento.

As duas voltaram para a aba da tenda onde um servidor explicava cada passo, devagar, quase como professora da roça falando do alfabeto numa visão libertadora e crítica.

A juíza federal Hanna Porto, aquela menina dos cabelos apressados e olhar atento, era quem coordenava tudo com o juiz Hugo Abas Frazão. São de uma geração nova, inteligente, éticos e honestos da justiça brasileira. Os dois circulavam como quem fiscaliza vento: atentos ao que ninguém vê, mas sente.
            - A ênfase, desta vez, são as comunidades quilombolas. Não se pode promover Justiça sem enfrentar a desigualdade.  -  Repetia Hanna, em voz firme, para quem perguntasse.

Se alguém escutasse de longe, pensaria tratar-se de palestra, mas era fala cotidiana, como quem pede café: simples e necessária.

Numa sala da universidade, a poesia apareceu baixinho, como quem pede licença entre um atendimento e outro. Eram escritores e escritoras da Academia Bacabalense de Letras, com poemas e livros abertos do Padre João Mohana expostos como janelas antigas. Diziam que poesia ali não era mero enfeite, mas lembrança: a literatura também é recurso criativo de se fazer justiça.

Um rapaz de fala mansa, chamado Mario Lucas, estudante do Ensino Médio, observava tudo com aquela curiosidade de quem acha que o mundo pode mudar se as palavras cooperarem.
            -  Professora, isso aqui é Justiça, né? -  Perguntou para uma voluntária ao lado.
            - É, Lucas. Justiça é quando alguém deixa de ser invisível.
            Ele pensou uns segundos, como quem procura uma brecha no futuro:
            - Então devia ter isso todo mês… tem gente invisível todo dia.

A voluntária respirou fundo, talvez concordando, talvez desejando o mesmo.

Quem passava não encontrava discurso de solenidade. Encontrava gente. Caravanas pequenas saíam das comunidades do entorno, como Campo Redondo, Piratininga, Catucá, até chegar na praça. Alguns vinham só pela curiosidade; outros, porque documento era urgência. Uns vinham por conciliação, outros por esclarecimento. Todos vinham porque direito não deve morar longe.

“Praça de Justiça e Cidadania” parecia nome oficial, desses que ficam bons em faixa. Mas ali, naquela semana, ganhou definição própria: era o lugar onde perguntas encontravam respostas possíveis, e onde respostas abriam outras perguntas.

No terceiro dia, ouvi um senhor perguntar ao servidor:
 - Moço, quem nunca teve nenhum documento, começa por onde?

Trabalhava para a Justiça Federal há 30 anos e não pensava em aposentadoria. Nunca tinha ouvido uma pergunta tão profunda. O servidor não riu, não estranhou, não acelerou o passo. Apenas respondeu do começo, como quem abre um livro na primeira página:
            - A gente começa por você.

E naquele instante, por mais clichê que parecesse, havia uma declaração de humanidade. Justiça começa pela pessoa, sempre.

No final da semana, a praça já sabia o nome de algumas histórias. Talvez as árvores tenham decorado. Talvez os ventos tenham soprado para os lugares onde direitos custam a chegar. Talvez ninguém perceba, mas quando um RG é emitido, um mapa inteiro se redesenha e se conquista o reconhecimento do estado.

A aposentada, a agricultora, a empresária,  o estudante curioso, os poetas, as crianças correndo entre uma tenda e outra, todos carregavam consigo uma pequena vitória. Não a vitória épica dos tribunais, mas aquela silenciosa, íntima, quase doméstica: poder dizer “eu existo” em voz documentada.

No último dia, o menino Lucas voltou à roda da poesia e pediu para ler um verso. Não era de ninguém famoso. Era dele mesmo:

-  “Quando o nome cabe inteiro no papel, o futuro parece maior.”

A praça ficou uns segundos quieta, como se tivesse acabado de tirar a própria identidade. Depois, o vento respondeu, folheando as páginas expostas: talvez tenha sido concordância. Talvez tenha sido esperança.

E, assim, a praça guardou um novo tipo de lembrança. Não apenas o registro do evento, mas o registro de cada pessoa que aprendeu, ali, que cidadania não é visita, é permanência por toda a vida.

  P.S: Esta Crônica é dedicada ao Ministro Carlos Pires Brandão

 

José Casanova
Professor, Jornalista , Escritor e Cronista
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Mundial de Letras  Infantojuvenil

sábado, 6 de dezembro de 2025

Academia Bacabalense de Letras ganha destaque na 4ª Praça de Justiça & Cidadania e reforça pedido por sede própria


    A cidade de Bacabal recebeu, ao longo desta semana (1 - 5), a 4ª edição da Praça de Justiça & Cidadania, iniciativa da Justiça Federal que reúne diversos órgãos públicos, instituições sociais e projetos comunitários com o objetivo de aproximar serviços essenciais da população. Entre os destaques culturais do evento, a Academia Bacabalense de Letras (ABL) marcou presença com uma programação que celebrou a literatura local e reafirmou a importância da arte como instrumento de cidadania.

    No espaço montado pela ABL, visitantes acompanharam recitais de poesia, participaram da exposição dedicada ao Padre João Mohana ,  uma das figuras mais significativas da história intelectual de Bacabal  e do Maranhão, e prestigiaram lançamentos de livros de escritores da região, fortalecendo a visibilidade dos autores bacabalenses.

Durante as atividades, o presidente em exercício da Academia, o escritor José Casanova, conversou com integrantes da Justiça Federal e destacou um dos principais desafios enfrentados pela instituição: a conquista de uma sede própria.

    A Academia precisa de um espaço digno, onde possamos expor permanentemente nossos livros, realizar cursos, palestras, oficinas literárias e receber a comunidade. Nossa missão é promover a cultura, e para isso precisamos de um lar que represente a literatura de Bacabal”, afirmou Casanova.

  O apelo foi ouvido com atenção pelo juiz federal Hugo Abas Frazão, um dos coordenadores da Praça de Justiça & Cidadania. O magistrado visitou o estande da ABL, participou das atividades literárias e demonstrou sensibilidade diante das necessidades apresentadas.

    Segundo relato dos presentes, Dr. Hugo Abas Frazão imediatamente entrou em contato com autoridades e parceiros da Justiça Federal, sinalizando disposição para colaborar na busca de soluções que fortaleçam a Academia Bacabalense de Letras.

 A interação entre a ABL e a Justiça Federal reforçou o caráter plural do evento, que não apenas oferece serviços jurídicos e sociais, mas também reconhece a cultura como eixo fundamental da cidadania. Para o público, os recitais e as exposições funcionaram como uma oportunidade de se conectar com a identidade cultural da cidade e valorizar a produção literária local.

    A Academia não popou elogios à dra. Hanna Porto Coordenadora doi evento, que consegiu juntar todos  os seguientos da justiça, com a partacipação de Juízes, Desembarfores e até um ministro do Superior Tribunal de Justiça.

    Com grande circulação de moradores, estudantes e representantes de instituições, a Praça de Justiça & Cidadania encerrou-se nesta sexta-feira (5), consolidando Bacabal como palco de integração entre cultura, educação, direitos e deveres , e abrindo espaço para que a literatura também ocupe o lugar de direito nas agendas públicas.













quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

CRÔNICA DO DIA: MARÉ PRETA DE BEM VIVER

Minha pele sem melanina me fazia diferente em meio àquelas mulheres negras que chegavam em caravanas. Eram Centenas de ônibus vindos dos quatro cantos do país.  Brasília acordou em estado de tambor, como se alguém tivesse batido o coração da cidade com as próprias mãos naquela terça-feira, 25 de novembro. A luz do sol do planalto central que costuma escorrer pelos edifícios modernistas de Niemeyer pareceu tremular, como se prestasse reverência ao cortejo que ainda se formava diante do Museu Nacional da República. Antes do relógio marcar onze horas, os primeiros tambores já respiravam no ar, era um som que não batia no ouvido, mas na memória.

Eram milhares.
Eram unidas.

Eram as mulheres negras do Brasil inteiro, caminhando para escrever mais um capítulo da sua própria história.

Senti algo que nunca tinha sentido antes, um sentimento que trazia a sensação de estar produzindo a reportagem de minha vida. Em meio ao mar de lenços, tranças, saias rodadas e palavras afiadas, caminhava dona Laurinda 68 anos, quilombola da Baixada Maranhense. Usava um vestido lilás e um colar de sementes que fora de sua avó.

            - Isso aqui já marchava antes de mim. -  Dizia ela.

Ao seu lado, o neto Lucas estudante de Ciências Sociais. Ele não marcharia, ficaria nos arredores para ajudar com água, orientações e acolhimento, mas era ele quem parecia aprender mais enquanto caminhava.

- Vó, é sempre assim? Essa força tanta quando a mulherada se junta? -  Perguntou Lucas, enquanto observava a multidão crescer.

Ela sorriu com aquele canto de boca de quem já viu o mundo tentar esconder sua existência.

-  Meu filho, força a gente sempre teve. O que faltava era o mundo parar pra enxergar.- 

- E agora enxerga?

-  Agora a gente obriga o povo a botar os óculos da consciência. – Disse sorrindo.


Mais adiante, vinha Jéssica, 32 anos, ribeirinha do Amapá, mãe solo e marisqueira. Nunca tinha saído da região onde nasceu. Foi o marido de criação, “não é pai, mas é quem cuida”, quem insistiu que ela fosse. Chamava-se Carlito, homem magro e de fala mansa, que viu a companheira perder primas, vizinhas e amigas para a violência doméstica que corrói silenciosamente a vida das mulheres.

Na porta de casa, antes da viagem, ele segurou as mãos dela com força:

- Vá, Jéssica. Vá e fale por todas elas.
-  E se ninguém ouvir? - Perguntou ela, receosa.

- Tem mais de dez mil mulheres indo contigo. Não tem como não ouvir. E se alguém fingir que não ouviu, a gente grita mais alto aqui.

Agora, em Brasília, Jéssica caminhava com os olhos úmidos, repetindo baixinho:

-  “Por elas… por elas… por nós…”

Mais ao centro da marcha, quase flutuando acima das bandeiras, estava Professora Núbia, 54 anos, intelectual da periferia de Bacabal, autora de livros sobre mulheres negras na educação. Ela conduzia um pequeno grupo de jovens, entre elas Marina, indígena Tukano, e Dandara, estudante de Direito. Em coro, entoavam uma frase que parecia empurrar a marcha adiante:

-  “Se o Brasil nasceu do nosso trabalho, a reparação nasce do nosso passo!”

Marina completava:

-  E do nosso canto. Sem canto não tem cura.

Foi aí que um grupo de homens que acompanhava a marcha, maridos, filhos, amigos e companheiros se aproximou e fez um círculo de proteção ao redor. Não invadiram o espaço; apenas reforçaram as bordas, como quem entende o limite entre apoio e protagonismo.

Um deles, Pedro, servidor público de Brasília, virou para o amigo:

- Hoje não é dia da gente falar. É dia da gente aprender.
- Aprende o quê? -  Perguntou o outro, meio confuso.

-  A ficar do lado sem atrapalhar. Isso já é meio século de atraso recuperado.

As mulheres riram ao ouvir de longe.


A marcha seguiu pela Esplanada dos Ministérios como um rio que lembrava o caminho esquecido. Cartazes pediam o fim da violência doméstica, o combate ao feminicídio, políticas de reparação histórica, respeito aos territórios, ao corpo e à autonomia das mulheres negras. O ar era pesado de um lado -  memória, luta - e leve do outro: esperança.

À frente da caravana maranhense, Dona Laurinda ergueu o punho e gritou para as outras:

-  MINHA AVÓ FOI PARIDA NA SENZALA. MINHA MÃE, NA PALHOÇA. EU NASCI NUM QUILOMBO. MINHA NETA VAI NASCER NUM BRASIL MELHOR!

O grito atravessou quadras, postes, prédios, asfaltos.
Havia quem chorasse.
Havia quem sorrisse.
Havia quem caminhava só para não desabar de emoção.

Quando o cortejo chegou à frente do Ministério da Justiça, a coordenadora da marcha pediu um minuto de silêncio. Os tambores cessaram como se obedecessem a uma memória maior.

E naquele um minuto, Brasília escutou o país inteiro respirando.

Foi Dona Jacira quem, sem aviso, quebrou o silêncio num sussurro que virou trovão:

- A gente não veio pedir. A gente veio cobrar. Quem plantou a dor fomos nós? Então por que o pagamento demora tanto?

Jéssica levantou sua faixa:

“Reparação não é favor. É justiça.”

Professora Núbia arrematou:

-  Bem viver é direito, não prêmio!

E Lucas, mesmo jovem, mesmo ainda aprendendo, completou:

-  E um país que não repara suas mulheres negras não merece chamá-las de cidadãs

Ao final, quando o sol começava a cair atrás do Congresso, a marcha se dispersou devagar. Não havia cansaço, mas uma espécie de força que só existe quando milhares caminham com o mesmo propósito. Jéssica encontrou Carlito por telefone:

- Conseguiu falar? - Perguntou ele.
-  Falei. E fui ouvida. Aqui e aí dentro de mim.
- Então já valeu. Volte orgulhosa.

Dona Laurinda apertou o braço do neto:

- Viu, Lucas? Isso não é só uma marcha. Isso é aviso.
- Aviso de quê, vó?

- De que se tentarem apagar a gente de novo… o Brasil inteiro vai ficar no escuro.

Ela sorriu. Ele sorriu.
E Brasília, mesmo silenciosa, parecia ainda pulsar no ritmo dos tambores.

Porque naquele 25 de novembro, as mulheres negras não caminharam apenas por elas, caminharam por tudo o que o Brasil pode ser, se algum dia tiver coragem de olhar de frente para as mãos que o construíram.

José Casanova

Professor, Jornalista, Escritor e Cronista membro da

Academia Bacabalense de Letras

Academia Mundial de Letras da Humanidade

Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

 

domingo, 30 de novembro de 2025

A Noite em que Alcântara Acordou

Dizem que, em Alcântara, o mar nunca é apenas mar. É memória. E memória, quando se encosta em pedra antiga, costuma falar. No século XVIII, antes que as ruínas virassem cartão-postal, e  a cidade uma museu a céu aberto; as casas senhoriais erguiam-se como sobrancelhas arrogantes diante da baía. Feitas de pedra e cal, com paredes tão grossas que nenhum grito de senzala, acreditavam os senhores, seria capaz de atravessar.

Dona Constança do Vale, matriarca temida e respeitada, vivia num desses casarões. As janelas azuis sempre abertas para o vento traziam ares de grandeza, mas eram os passos de seus escravizados que sustentavam o peso da casa. Ela caminhava pelos corredores de pedra com um rosário na mão e uma certeza no peito: a ordem do mundo era aquela, e Deus, por algum motivo insondável, concordava.

Na parte dos fundos, onde a brisa do mar se tornava mais salgada, ficava a senzala. As paredes eram mais baixas, o teto mais abafado, mas ali havia olhos que brilhavam de um jeito que nem Dona Constança entendia. Eram os olhos de Kalena, mulher negra de fala mansa e memória afiada. Diziam que ela era filha de uma princesa africana, mas diziam isso baixinho, para que o feitor Rodrigo Fagundes não ouvisse e resolvesse testar se princesa também sangrava.

Kalena sabia ouvir o mar. Desde criança, percebia que as ondas de Alcântara carregavam qualquer coisa que não era deste mundo. A noite o vento parecia com grito e choro de coisas de outro mundo.  Os outros se encolhiam ao ouvir “as vozes da baía”, mas ela sorria, como quem reencontra parentes antigos. O mar, para Kalena, era o único lugar onde podia respirar liberdade, mesmo que apenas pela imaginação.

Na mesma senzala vivia Jobé, jovem forte, marcado de chicotes e silêncios. Crioulização do nome europeu "José", muito comum em senzala. Era ele quem, todas as noites, acendia uma lamparina para que os cativos pudessem conversar às escondidas:

 - Luz pequena também afasta escuridão grande.-  Dizia. Jobé.

Ele acreditava que, um dia, cruzaria o mar e voltaria para a terra de seus ancestrais. Kalena, sempre pragmática, respondia:

-  O mar leva… mas também devolve. É só saber o que pedir.

Jobé sorria, imaginando que, naquelas palavras, havia mais profecia que poesia.

Os portugueses da vila temiam três coisas: tempestades, traições e índios. E os índios, por sua vez, temiam apenas os portugueses. Jaciara, senhora da Lua, com sua beleza, mistério e feminilidade,  mulher do povo Tupinanbá, caminhava pela praia com o arco às costas, observando a cidade que ocupava a terra dos seus. Às vezes, quando a maré subia, ela dizia ao vento:

-  O mar não engole nada por acaso. Algum dia, ele pede de volta.

Numa noite sob Alcântara em que o céu parecia feito de carvão riscado, o mar começou a rugir.  Urrava como sentisse as dores do pelourinho. Não era tempestade comum; era o rugido de bicho antigo, velho como as primeiras canoas que tocaram aquelas águas. Jobé, Kalena e os outros escravizados acordaram assustados. Até o feitor, homem que se julgava sem medo, tremia como cachorro molhado.

Dona Constança saiu para o alpendre com seu rosário apertado entre os dedos:

-  Mistérios... sempre esses mistérios do mar.

O mar ignorou a reza. Cada onda vinha mais alta, mais feroz, quebrando nas pedras como se quisesse derrubar a cidade inteira. Pelas frestas das janelas, via-se a baía subindo como um peito revolto.

Jaciara apareceu correndo pela rua principal, gritando:

-  O mar está vindo cobrar!

Ninguém acreditou nela, até a água entrar pelos becos, arrastando tudo em seu caminho.

Então aconteceu algo que, até hoje, nem mesmo os pescadores mais velhos entendem direito: no auge da ameaça, quando a água já lambia as paredes da senzala do Coronel Baltazar Montenegro do Vale, o mar simplesmente parou. Recuou como um bicho cansado. E deixou, sobre as pedras, um silêncio tão profundo que até a lua pareceu prender a respiração.

Jobé foi o primeiro a perceber que algo havia mudado. A senzala, antes úmida e escura, estava inteira. Nenhuma parede quebrada. Nenhum corpo arrastado. Apenas um rastro de conchas, como se o mar tivesse deixado um recado.

Kalena ajoelhou-se, pegou uma pequena concha branca e murmurou:

-  Mar de Alcântara tem segredo. Por nós ele chora… por nós ele guarda.

Os escravizados passaram o resto da noite acordados. Pela primeira vez em muitos anos, não sentiram medo. Sentiram… esperança. Não sabiam explicar, mas perceberam que, naquela noite, o mar havia escolhido proteger quem sempre foi esquecido.

Já Dona Constança , olhando o horizonte, entendeu que havia algo mais forte que sua casa de pedra: a força de um povo inteiro que, mesmo acorrentado, ainda vibrava com o vento.

Na manhã seguinte, Jobé encontrou Jaciara na praia. A índia olhava o mar como quem cumpre promessa.

- O que foi isso?  - Ele perguntou.

Jacira sorriu, sem olhar para ele.

-  O mar não gosta de injustiça. Às vezes ele avisa devagar. Às vezes ele grita. – Respondeu Jaciara lança uma flecha  no mar.

Jobé respirou fundo e sentiu, pela primeira vez, que um mundo sem correntes era possível. O mar de Alcântara, com seus mistérios e suas ondas que guardam memórias ancestrais, lhe dizia isso.

E Kalena, segurando a concha branca, prometeu que nunca deixaria a história se perder.

Porque, naquela cidade de paredes de pedra, era o povo escravizado, e não os senhores,  quem carregava dentro do peito a verdadeira força de permanência.

E o mar… o mar  de Alcântara continua sussurrando.
Para quem tem coragem de ouvir.

 

José Casanova

Professor, Jornalista, Escritor e Cronista

Membro da Academia Bacabalense de Letras

Academia Mundial  de Letras da Humanidade

Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

CRÔNICA: A CIDADE ONDE ATÉ OS MILAGRES ERRAM A MIRA

 

Eu ouvi essa história numa roda de amigos, e Juro, quase caí da cadeira. Na pequena Santa Filomena das Bacabas, cidade tão sossegada que até o vento cochilava na sombra da igreja matriz, todo mundo conhecia as manias do padre Horácio. Homem bom, de alma leve, mas com um vício que Deus talvez tolerasse na categoria “pecadinhos humanos”: baralho. Não jogava por dinheiro, ou pelo menos era o que garantia com aquele sorriso santo demais para convencer alguém. Jogava porque dizia que “um padre também precisa exercitar o raciocínio”. E assim, entre Ave-Marias e trincas de ouros, o padre vivia.

Numa certa manhã de domingo, correndo contra o relógio para começar a missa das nove, a mais disputada, já que depois dela o povo ia direto para o mercado comprar galinha, o padre Horácio arrumou às pressas o sacrário. O piso claro da igreja ganhou umas manchas novas, cortesia dos sapatos enlameados do padre. Nem percebeu que, entre as hóstias, uma ficha branca do seu jogo de baralho se infiltrara como quem pede guarida no reino dos céus.

A missa correu bonita, até o momento da comunhão.

Foi quando apareceu ele: Milo Bregueço, o clássico bêbado oficial da cidade, cambaleando no corredor como quem procura o chão pra pedir desculpas. O padre, cheio de piedade e sem óculos naquele instante, colocou na boca do infeliz justamente a ficha branca.

Bregueço o mastigou.
Mastigou de novo.
Fez uma careta.
Tentou dissolver o milagre que não desmanchava.

Uma senhora devota, sentada ao lado dele, Dona Mariazinha, aquela que nunca perdia a chance de ensinar a fé alheia, sussurrou aflita:

- Irmão… não mastigue Nosso Pai!

Milo Bregueço virou o rosto devagar, olhos apertados, boca tentando triturar o que parecia uma telha de cerâmica.

- Nosso Pai? — Disse ele. — Duro desse jeito… só pode ser o nosso avô.

A mulher soltou um grito tão agudo que até o santo da parede se envergonhou e baixou as asas.

Mas os feitos de Bregueço não pararam aí.Santa Filomena das Bacabas tinha uma particularidade urbanística: a igreja matriz ficava colada ao estádio municipal, separados apenas por uma cerca que já perdera metade dos talos. Era comum, portanto, que um gol animado interrompesse uma ladainha, ou que um hino interrompesse um pênalti.

Num domingo seguinte, ainda com mais álcool do que sangue no corpo, Milo Bregueço entrou na igreja achando que estava indo assistir ao jogo. Sentou-se, fez pose de torcedor e esperou o apito inicial.

No púlpito, o padre Horácio pregava com entusiasmo:

-  Jesus passou na Galileia! Jesus passou no Getsêmani! Jesus passou em Nazaré! Jesus passou pela Judeia!

Bregueço, acreditando firmemente estar acompanhando uma narração esportiva, do narrador Carlos Borromeus, levantou o braço e berrou com toda a potência que a cachaça lhe dava:

-  Esse time não tem zagueiro, não!? Derruba esse cara, senão ele faz o gol!

A igreja inteira virou para ele. Risos inocentes...
O padre suspirou fundo.

E Milo Bregueço, finalmente entendendo o mal-entendido, fez o sinal da cruz de

um jeito tão atravessado que parecia estar espantando mosquitos.

No fundo, a gente é tudo meio Milo Bregueço: mastigando o que não desmancha e tentando entender sermão como se fosse jogo. Isso acontece quando caminhamos depressa demais, distraídos demais ou bêbados demais, de cachaça, de pressa, de orgulho.  Se tem lição nisso tudo, talvez seja só essa: quem vive distraído engole cada ficha que Deus duvida. O riso que fica é um lembrete doce, e meio trôpego, de que até as trapalhadas podem ensinar alguma coisa.

Dizem que foi verdade, e se não foi, deveria ter sido.

José Casanova

Professor, Jornalista, Escritor e Cronista membro da

Academia Bacabalense de Letras

Academia Mundial de Letras da Humanidade

Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil