Dona Ana Raimunda viera do quilombo São Sebastião dos Pretos exclusivamente para participar da 5ª edição da Praça de Justiça & Cidadania, antes de entrar no carro caminhou até o centro da comunidade, onde era possível ver a escola, o Salão de Terecô e o pequeno museu do quilombo que guardava correntes, panelas e outros objetos centenários provas palpáveis que seus bisavós foram escravizados. Participar da “Praça” de Justiça & Cidadania lhe trazia um sentimento de esperança com cheiro de reparação e tempero de cidadania.
Dizem que toda praça carrega conversas guardadas
nas árvores. Naquela semana, na Universidade Estadual do Maranhão em Bacabal,
uma praça aprendeu a falar de Justiça, e não daquela que fica trancada em
gabinetes, mas da que senta debaixo de tenda, olha no olho e pergunta: “em que
posso ajudar?”.
A ideia nasceu longe dali, nos corredores dos
tribunais, pelas mãos do Ministro Carlos Pires Brandão, ainda quando era
desembargador no TRF1. Imaginou que Justiça não devia ser ponto fixo no mapa,
mas estrada. E estrada, como sabemos, sempre chega onde a cidade costuma virar
silêncio. Pois chegou.
Logo
cedo, dona Ana Raimunda apareceu com o passo miúdo e a certeza grande: trazer
um documento não é burocracia, é existência. Afinal, algumas coisas só começam
oficialmente depois de um RG.
- Vim ajeitar esse papel.- Disse ela, segurando o registro e ajeitando o vestido, como quem organiza a própria história.. - Fui bem recebida. Que bom, né?
Ela sorriu como quem ajeita uma história antiga.
Aquele pedaço de papel seria chave para portas que antes ela apenas empurrava
timidamente.
Ao lado,
Joana do Carmo, agricultora do Piratininga, balançava a cabeça concordando com
o próprio pensamento:
- Tem oportunidade que se perde se a gente não
vem logo. RG, gente pra ouvir… tá maravilhoso. - Repetiu, meio espantada com a
naturalidade do atendimento.
As duas voltaram para a aba da tenda onde um
servidor explicava cada passo, devagar, quase como professora da roça falando
do alfabeto numa visão libertadora e crítica.
A juíza federal Hanna Porto, aquela menina dos cabelos
apressados e olhar atento, era quem coordenava tudo com o juiz Hugo Abas
Frazão. São de uma geração nova, inteligente, éticos e honestos da justiça
brasileira. Os dois circulavam como quem fiscaliza vento: atentos ao que
ninguém vê, mas sente.
- A ênfase, desta vez, são as
comunidades quilombolas. Não se pode promover Justiça sem enfrentar a
desigualdade. - Repetia Hanna, em voz firme, para quem
perguntasse.
Se alguém escutasse de longe, pensaria tratar-se de
palestra, mas era fala cotidiana, como quem pede café: simples e necessária.
Numa sala da universidade, a poesia apareceu
baixinho, como quem pede licença entre um atendimento e outro. Eram escritores e escritoras da
Academia Bacabalense de Letras, com poemas e livros abertos do Padre João
Mohana expostos como janelas antigas. Diziam que poesia ali não era mero
enfeite, mas lembrança: a literatura também é recurso criativo de se fazer justiça.
Um rapaz
de fala mansa, chamado Mario Lucas, estudante do Ensino Médio, observava tudo
com aquela curiosidade de quem acha que o mundo pode mudar se as palavras
cooperarem.
- Professora, isso aqui é Justiça, né? - Perguntou para uma voluntária ao lado.
- É, Lucas. Justiça é quando
alguém deixa de ser invisível.
Ele pensou uns segundos, como
quem procura uma brecha no futuro:
- Então devia ter isso todo
mês… tem gente invisível todo dia.
A voluntária respirou fundo, talvez concordando,
talvez desejando o mesmo.
Quem passava não encontrava discurso de solenidade.
Encontrava gente. Caravanas pequenas saíam das comunidades do entorno, como
Campo Redondo, Piratininga, Catucá, até chegar na praça. Alguns vinham só pela
curiosidade; outros, porque documento era urgência. Uns vinham por conciliação,
outros por esclarecimento. Todos vinham porque direito não deve morar longe.
“Praça de Justiça e Cidadania” parecia nome
oficial, desses que ficam bons em faixa. Mas ali, naquela semana, ganhou
definição própria: era o lugar onde perguntas encontravam respostas possíveis,
e onde respostas abriam outras perguntas.
No terceiro dia, ouvi um senhor
perguntar ao servidor:
- Moço, quem nunca teve nenhum
documento, começa por onde?
Trabalhava para a Justiça Federal há 30 anos e não pensava em aposentadoria. Nunca tinha ouvido uma pergunta tão profunda. O servidor não riu, não estranhou, não acelerou o
passo. Apenas respondeu do começo, como quem abre um livro na primeira página:
- A gente começa por você.
E naquele instante, por mais clichê que parecesse,
havia uma declaração de humanidade. Justiça começa pela pessoa, sempre.
No final da semana, a praça já sabia o nome de
algumas histórias. Talvez as árvores tenham decorado. Talvez os ventos tenham
soprado para os lugares onde direitos custam a chegar. Talvez ninguém perceba,
mas quando um RG é emitido, um mapa inteiro se redesenha e se conquista o reconhecimento do estado.
A aposentada, a agricultora, a empresária, o estudante curioso, os poetas, as crianças correndo
entre uma tenda e outra, todos carregavam consigo uma pequena vitória. Não a
vitória épica dos tribunais, mas aquela silenciosa, íntima, quase doméstica:
poder dizer “eu existo” em voz documentada.
No último dia, o menino Lucas voltou à roda da
poesia e pediu para ler um verso. Não era de ninguém famoso. Era dele mesmo:
- “Quando o
nome cabe inteiro no papel, o futuro parece maior.”
A praça ficou uns segundos quieta, como se tivesse
acabado de tirar a própria identidade. Depois, o vento respondeu, folheando as
páginas expostas: talvez tenha sido concordância. Talvez tenha sido esperança.
E, assim, a praça guardou um novo tipo de
lembrança. Não apenas o registro do evento, mas o registro de cada pessoa que
aprendeu, ali, que cidadania não é visita, é permanência por toda a vida.
Professor, Jornalista , Escritor e Cronista
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Mundial de Letras Infantojuvenil

































