O sol estava de rachar o quengo, daqueles que a
gente só enfrenta por dois motivos: feira e prosa boa. O sábado amanheceu
bonito, céu limpo, azulado e com poucas nuvens. Cheguei cedo, ainda com o
cheiro do café coado grudado no bigode, e lá estavam eles: os folhetos de Literatura de cordel, pendurados num barbante, balançando com o vento quente como se
estivessem cochichando segredo.
Não é história da Trancoso, juro
por Nossa Senhora das Candeias, de
repente um deles abriu a boca e começou a falar:
-
Ô, cumpade Camelo! - Disse O
Pavão Misterioso, sacudindo as asas. -
Foi bom demais tu ter me botado no papel. Eu tava doido pra sair voando
atrás daquela princesa e agora o mundo todo sabe da minha história!
José Camelo de Melo Rezende, o
verdadeiro autor do Romance do Pavão Misterioso, com aquele jeito de matuto
sabido, respondeu:
- Oxente, Pavão! Não foi fácil
não, viu? Passei noite rimando, botando coração e paixão na mesma redodilha.
Mas ficou arretado!
Nisso, chegou João Martins de
Athayde, montado num jegue e carregando um balaio cheio de folhetos
fresquinhos. Desceu, limpou o suor da testa e disse:
- Pois foi eu quem botei essa
papelada no mundo, visse? Se não fosse eu, essas histórias ficavam tudo mofando
em gaveta.
Um caboclinho que vendia tapioca
na banca ao lado gritou:
- Eita, tio! Esse negócio é de
comer?
Patativa do Assaré, que tava
quieto sentado num tamborete, tirou o chapéu de palha e falou com voz de
poesia:
- Comer não é, meu fi. Mas dá
sustança na alma. Aqui tem verso sobre seca, sobre a fé que a gente carrega,
sobre a dor de perder roçado e o riso de dançar forró no São João.
Foi aí que Ariano Suassuna
apareceu, com um olhar danado de quem tá inventan-do peça nova, e disse:
- Pois se é pra falar de alegria,
deixa eu botar João Grilo e Chicó nessa conversa. Eles enganam até o cão e
ainda fazem a gente rir no meio da tragédia.
Do outro lado da feira, apareceu
Rodolfo Coelho Cavalcante, dedo em riste, com ares de quem ia declamar:
- E eu botei a política na rima!
Fiz cordel de eleição, de prefeito, de deputado. O povo lia e sabia logo se rir
ou se chorar. E ainda combati o comunismo.
A feira inteira já tava virada
num reboliço. O sanfoneiro da esquina chamado Dominguinhos, até parou o xote
pra escutar. Uma velha, com saco de farinha na cabeça, perguntou:
- E hoje, tem quem escreva essas
belezuras?
Um folheto se balançou e
respondeu, do jeito mais bonito do mundo:
- Tem sim, minha véia! Agora nós
tá até na internet. Tem cordel em PDF, em WhatsApp, mas a essência é a mesma:
rimando bonito, contando história e ensinando o povo a rir da própria vida.
O sol começou a baixar, a feira
foi esvaziando, e eu fiquei ali, besta, olhando os folhetos quietinhos. Pareciam
só papel, mas eu sabia que dentro deles morava o Brasil inteiro: a risada, o
choro, a luta e a esperança do povo.
Saí de lá com a alma cheia e a
certeza de que o cordel é como aquele café da manhã bem coado: pode mudar a
xícara, pode mudar o fogão, mas o gosto bom continua o mesmo.
Pois bem, seu moço, a feira
foi fechando, os folhetos ficaram pendurados, e eu fui pra casa com a cabeça
fervendo. Dormi pensando naquilo e, quando dei fé, sonhei com uma cena daquelas
de dar nó na mente: os cordelistas do passado estavam numa lan house, mexendo
em computador!
Leandro Gomes de Barros tava
sentado na frente do monitor, resmungando:
- Oxente, que danado é esse
tal de “Wi-Fi”? Tem fio, não tem fio, e mesmo assim diz que tá conectado?
Do outro lado, Ariano Suassuna
ria que só.
- Leandro, tu te preocupa não. Agora teu Pavão
Misterioso vai voar mais longe do que tu imaginava. Vai voar pelo zap,
pelo Instagram, pelo TikTok!
João Martins de Athayde, com
faro de comerciante, já tinha aberto uma loja virtual e gritava:
- Vem comprar cordel online!
Pix, cartão, boleto... Aqui aceita até fiado digital!
Patativa do Assaré, sentado
com o celular na mão, tava encantado:
- Ô coisa bonita! Agora eu
posso mandar minha poesia pro mundo todo sem precisar sair do Assaré.
Rodolfo Coelho Cavalcante,
sempre com um olho na política, aproveitou a chance:
- Já pensou? Vou fazer cordel
falando das fake news, do preço da gasolina, da reforma da previdência, da
tentantiva de golpe de estado... Vai dar uma ruma de curtida!
De repente, chegou uma turma
de jovens, celular na mão, fone no ouvido. Um deles falou:
- Eita, seu Leandro, bora
gravar um podcast com o senhor? Vai ser sucesso!
Leandro arregalou os olhos:
- Pode o quê?
- Podcast, seu Leandro! - Explicou o jovem. - É tipo roda de prosa, mas o povo escuta pelo
celular.
Patativa bateu palma, todo
feliz:
- Ah, então é isso! A poesia
agora cabe dentro do bolso!
Ariano já tava animado demais:
- Bora fazer uma live! João Grilo e Chicó
respondendo pergunta ao vivo! Quero ver se o diabo vai ter coragem de entrar no
chat!
A molecada ria e gravava tudo
para postar nos stories. E foi aí que eu percebi: o cordel não é só passado,
não. Ele tá mais vivo do que nunca, só que agora fala também a língua da
internet.
Quando acordei, ainda era
madrugada, e eu juro que não é história de Trancoso amigo leitor, parecia que o
galo da vizinha cantou em sextilha. Saí na rua, vi um menino com celular na mão
e perguntei:
- Tu tá vendo o quê aí?
- Um cordel animado, tio. - Ele respondeu,
rindo. - Agora tem até desenho e dublagem no TikTok.
E eu? Eu fiquei feliz da vida.
Porque se antes o cordel balançava no barbante da feira, hoje ele balança nas
redes, no feed, na timeline. Mas continua sendo o mesmo: um jeito bonito de
contar a vida, de rir da dor, de dar nome à esperança.
E lá vou eu, pensando: se o
cordel se reinventou até na internet, é sinal de que vai viver mais que todos
nós. Porque, no fundo, cordel não morre: só muda de corda.
Para minha surpresa, na noite
seguinte, o sonho continuou? Tenho
dúvida se era sonho ou realidade, pois eu me vi acordando num futuro danado de
moderno, século XXII, e lá estava o cordel, só que agora... em 3D!
Logo na chegada, dei de cara
com Leandro Gomes de Barros usando um óculos de realidade virtual, parecendo
menino quando ganha brinquedo novo.
- Ave Maria, que invenção é
essa, homem? - Perguntei.
Ele tirou os óculos, riu e
disse:
- Agora não precisa mais
pendurar os folhetos em corda, não. A gente pendura no ar! O povo entra no
metaverso e assiste o Pavão Misterioso voando de verdade. Parece até
filme de cinema, só que rimado!
No canto da sala futurista,
Patativa do Assaré tava num holograma, declamando poesia com voz que ecoava
pelo espaço. Cada palavra virava luz, formava imagens no ar, dava pra ver a
seca, o açude, o vaqueiro e até o forró animado.
- Olha aí, meu cumpade! -
Disse Patativa. - Agora meu verso não só fala, ele mostra!
Rodolfo Coelho Cavalcante
estava com um tablet flutuante e comentou:
- Eita, agora até os políticos do futuro vão tremer,
porque eu boto eles na rima e o holograma mostra a cara deles na hora. Não tem
como negar!
Ariano Suassuna apareceu
vestindo uma capa cheia de símbolos armoriais que brilhavam.
- Pois é, minha gente! Agora a
gente tem teatro de cordel no espaço. Chicó e João Grilo tão fazendo espetáculo
lá em Marte. Dizem que até os marcianos tão aprendendo sextilha!
E lá estavam as crianças do
futuro, todas com caderninhos digitais, escrevendo seus próprios cordéis com a
ajuda de inteligência artificial. Uma delas me mostrou o que fez:
- Olha, tio, escrevi um cordel
sobre viagem no tempo.
E recitou, com rima e tudo:
“Do passado pro futuro
Levo o verso, levo a fé,
Cordel não tem muro,
Vai aonde o povo quer.
Do sertão até a lua,
Cordel é Brasil em pé.”
Eu, que já tava de queixo
caído, vi uma professora chamar os alunos pra aula. A lousa era um painel
digital gigante e, quando ela falou “Vamos estudar cordel”, o texto se
transformou em animação. Cada sextilha dançava na tela, e os personagens saíam
pra conversar com os meninos.
Um estudante perguntou:
- Professora, cordel é só coisa antiga?
E o holograma de José Camelo
de Melo Rezende, do jeito mais bonito do mundo:
- Antigo não, meu filho.
Cordel é eterno. Porque enquanto existir gente querendo contar história, o
cordel vai tá lá ... seja no papel, no zap, no holograma ou no coração do povo.
Quando acordei desse sonho
futurista, fiquei deitado pensando: se o cordel sobreviveu ao tempo, à seca, à
modernidade e até às redes sociais, não vai ser o futuro que vai derrubar ele.
Pelo contrário: o futuro vai é fazer o cordel brilhar mais.
Porque no fim das contas, meu
amigo, cordel é igual a estrela no céu do sertão: pode passar mil anos, mas
sempre vai ter uma brilhando pra mostrar o caminho.
José Casanova
Professor, Jornalista, Escritor e Crônista Membro da
Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil











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