Em 13 de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea, que aboliu a escravidão do Brasil. Passados 130 anos, o racismo permanece como um grave problema na sociedade brasileira.
Por Daniel Neves Silva
Em 2018, completam-se 130 anos da abolição da escravatura no Brasil. Uma data tão importante gera debates e reflexões acerca da inserção do negro na sociedade brasileira naquele período do final do século XIX e também sobre os desafios atuais que a nossa sociedade ainda possui nas questões que envolvem a desigualdade racial que existe em nosso país.
Uma série de dados reforça a existência do racismo no Brasil. Isso é resultado de todo o processo histórico que aconteceu por aqui, que não promoveu políticas públicas efetivas no sentido de inserir os negros na sociedade. Essa situação reflete-se na condição atual do nosso país em índices que evidenciam uma desigualdade racial alarmante.
Sobre essa discussão cabe também algumas reflexões acerca da continuidade do trabalho escravo no nosso país (de maneira ilegal, claro) mesmo após os 130 anos da proibição desse tipo de trabalho no Brasil. A respeito dessa discussão cabe também uma contextualização sobre como aconteceu o processo que causou o fim da escravatura na década de 1880.
A causa abolicionista no Brasil ganhou força a partir da década de 1870, sobretudo após o fim da Guerra do Paraguai. O fortalecimento da causa abolicionista refletiu-se diretamente no Brasil a partir da fundação de organizações que debatiam ações para promover essa causa nos meios políticos brasileiros e foi acompanhado de algumas leis, como a Lei do Ventre Livre.
A transição do Brasil para o fim da escravatura foi, no entanto, lenta e gradual de uma maneira que atendia os interesses dos grandes defensores desse tipo de trabalho no nosso país: os grandes proprietários do Sudeste brasileiro. A postergação de reformas que caminhassem nesse sentido (da emancipação dos negros) era uma prática brasileira desde o Primeiro Reinado.
Podemos começar pelo fato de que o Brasil, após a sua independência, não apenas manteve como reforçou a importância da escravidão, o que, em geral, foi bastante diferente do que aconteceu na América Espanhola, uma vez que grande parte da América Latina aboliu essa modalidade de exploração do trabalho antes da década de 1860.
A própria proibição do tráfico negreiro ocorreu apenas em 1850 (apesar de existir uma lei de 1831 que já proibia esse comércio) e após grande pressão da Inglaterra sobre o nosso país para que isso acontecesse. Essa lei ficou conhecida como Lei Eusébio de Queirós e só foi decretada após a Inglaterra pressionar o nosso país a partir do Bill Aberdeen.
De toda forma, mudanças práticas nesse sentido só aconteceram a partir de 1870, pois, conforme mencionado, a partir dessa década a causa abolicionista ganhou força no Brasil. Além disso, surgiu uma preocupação entre membros do governo monárquico acerca das tensões que o embate entre abolicionistas e escravocratas poderia gerar.
Essa preocupação ocorria, em grande parte, pela tensão que existia nos EUA entre o Norte abolicionista e o Sul escravocrata. Lá essa tensão foi tão grande que foi em parte responsável pela Guerra de Secessão, que se estendeu durante quatro anos, o que gerou muita destruição material e foi responsável pela morte de 600 mil pessoas.
Além da preocupação em evitar um conflito nesse sentido no Brasil, o governo monárquico preocupava-se também com a reputação internacional do Brasil, pois havia grande pressão internacional para que o país acabasse com a escravidão. Essa pressão intensificou-se depois que Rússia e EUA colocaram fim ao trabalho escravo em 1861 e 1863, respectivamente.
A pressão internacional justificava-se também em parte porque a escravidão, além de ser vista de maneira negativa pelos novos padrões civilizacionais que já despontavam, era enxergada em determinadas partes do globo como um entrave para a modernização do capitalismo, que estava em curso nas nações europeias e nos EUA.
De toda forma, o fortalecimento desse debate fez com que, em 1871, fosse aprovada a Lei do Ventre Livre. Essa lei decretava que o fruto do ventre de todas as escravas do Brasil seria considerado livre, desde que exercesse um período de trabalho como forma de compensação ao dono dos escravos. Assim, o dono que libertasse seu escravo aos oito anos de idade teria direito a uma indenização, mas caso optasse por ficar com o escravo até os 21 anos, não seria indenizado.
Essa lei gerou um debate muito grande na época. Até os abolicionistas ficaram com muitas desconfianças. No entanto, as historiadoras Lilian Schwarcz e Heloísa Starling apontam um elemento importante que evidenciava uma mudança de mentalidade no Brasil e que desagradou consideravelmente aos grandes proprietários:
Havia na lei outro detalhe que desgostou os grandes proprietários e os indispôs com a monarquia. A medida reconheceu formalmente a existência de famílias escravas. Organizaram-se, então, listas de matrícula criadas a partir de um fundo de emancipação, que separava famílias de indivíduos escravos. As decorrências da lei de 1871 não foram, nesse sentido, desprezíveis, uma vez que se invertiam antigos procedimentos: se até ali os chamados “homens livres de cor” é que precisavam se fazer socialmente reconhecidos, agora o ônus da prova ficava com o senhor, que era obrigado a apresentar a matrícula do seu escravo. Sem ela, qualquer pessoa “de cor” era considerada juridicamente livre|1|.
Esse debate seguiu dividindo a sociedade brasileira, e a atuação dos grupos abolicionistas durante a década de 1880 intensificou-se, mas não sem uma reação conservadora. Nessa questão da reação conservadora nesse período, podem ser destacadas a Lei Saraiva, de 1881, e a Lei Saraiva-Cotejipe, de 1885, e também conhecida como Lei dos Sexagenários.
A Lei Saraiva de 1881 criou dispositivos que reorganizaram o sistema eleitoral brasileiro, promovendo a redução dos quadros eleitorais do nosso país. Com essa lei, estipulavam-se eleições diretas no país, mas se exigia o dobro para ter direito ao voto (a renda mínima passou a ser de 200 mil réis), bem como a assinatura do votante (uma estratégia para excluir os analfabetos).
Essa lei pode ser entendida como uma estratégia dos conservadores brasileiros para impedir que o perfil do eleitorado brasileiro se alterasse radicalmente com a aceleração do processo emancipatório do nosso país naquele momento. Além disso, estipulava que o eleitor ideal para essa ala política seria um grupo muito restrito, composto pela elite econômica e branca do nosso país. Assim, os grupos conservadores anteciparam-se às mudanças que poderiam acontecer e tomaram medidas que visavam a restringir o acesso do negro ao voto.
A Lei dos Sexagenários ou Saraiva-Cotejipe, de 1885, decretava que os escravos com idade superior a 65 anos seriam libertos de sua condição de escravos desde que trabalhassem por mais um período de três anos como compensação. A lei foi bastante criticada pelos abolicionistas, pois era considerada uma proposta tímida e conservadora e que tinha como objetivo retardar a abolição.
Apesar dessa reação conservadora, a força do abolicionismo cresceu. Diversas organizações abolicionistas começaram a agir e criar ações para promover a causa e garantir a defesa dos escravos no Brasil. Eventos e manifestações públicas tornaram-se comuns após 1885, e o fortalecimento dessa causa refletiu-se diretamente na postura dos escravizados.
Surgiram, principalmente no Sudeste brasileiro (região que concentrava a maioria dos escravos brasileiros), rebeliões e fugas de escravos. Ao redor do Rio de Janeiro, além de regiões no Vale do Paraíba e no litoral paulista, surgiram diversos quilombos, que abrigavam os escravos que haviam fugido de seu cativeiro. O decreto da abolição no Brasil então, segundo Lilian Schwarcz e Heloísa Starling, foi resultado dessas múltiplas lutas travadas no país:
O fato é que conviviam modalidades, muitas vezes concomitantes, de luta abolicionista: a ação dos próprios escravos, a movimentação dos abolicionistas e a batalha política em nível nacional. O abolicionismo se convertia, portanto, em outra grande causa forjando o sentimento e a imaginação dos brasileiros|2|.
Assim, todo esse processo resultou no que ocorreu em 13 de maio de 1888, dia em que a Princesa Isabel realizou a assinatura da Lei Áurea, ratificando a abolição da escravatura no Brasil de maneira imediata e sem indenização para aqueles que possuíam escravos. Estima-se que cerca de 700 mil escravos tenham conquistado sua liberdade com a lei.
Um dado importante a ser destacado é que o Brasil foi o último país de todo o continente americano a abolir o trabalho escravo em seu território (Cuba foi o penúltimo, abolindo em 1886). Isso deixou evidente o alto grau de conservadorismo do nosso país, que postergou o fim da escravidão até quando fosse possível.
Por fim, vale dizer que a abolição da escravatura não foi acompanhada de políticas que promovessem a integração dos negros libertos na sociedade e muito menos para que obtivessem um meio de subsistência. Isso foi o grande responsável pelo abismo social existente entre negros e brancos no nosso país, visto que medidas racistas foram tomadas durante as décadas seguintes e mantiveram esse quadro de desigualdade social.
Na prática, o que mudou foi que a escravidão enquanto prática institucionalizada e legalizada pelo Estado deixou de existir. O racismo e a exclusão do negro da sociedade permaneceram enquanto práticas da nossa sociedade, e isso pode ser percebido ao longo de todo o processo histórico do Brasil a começar pela própria Primeira República.
Primeiramente, uma questão muito importante ao se pensar em abolição é analisar as formas de integração econômica que deveriam ter sido realizadas. Joaquim Nabuco, por exemplo, afirmava que era de vital importância que a abolição fosse acompanhada de uma reforma agrária para garantir ao liberto uma forma de subsistência e para que o ciclo de dependência do negro não se perpetuasse. Isso não aconteceu, e os negros tiveram poucas oportunidades de se desenvolver economicamente.
O que houve foi exatamente a perpetuação desse quadro de exploração, desigualdade e racismo, pois, conforme relata o historiador Boris Fausto, os escravos no Nordeste, em grande parte, continuaram dependendo dos antigos proprietários para sobreviver. No caso de São Paulo e no Rio Grande do Sul, os ex-escravos tiveram pouco acesso a oportunidades de empregos melhores, pois os empregadores preferiam contratar os imigrantes europeus|3|. Por fim, Boris Fausto sentencia:
Apesar das variações de acordo com as diferentes regiões do país, a abolição da escravatura não eliminou o problema do negro. A opção pelo trabalhador imigrante, nas áreas regionais mais dinâmicas da economia, e as escassas oportunidades abertas ao ex-escravo, em outras áreas, resultaram em uma profunda desigualdade social da população negra. Fruto em parte do preconceito, essa desigualdade acabou por reforçar o próprio preconceito contra o negro. Sobretudo nas regiões de forte imigração, ele foi considerado um ser inferior, perigoso, vadio e propenso ao crime; mas útil quando subserviente|4|.
Além disso, podem ser destacados episódios da história brasileira que ressaltam o preconceito e a violência contra o negro no Brasil. No período da Primeira República, podem ser destacados os eventos relacionados com a Revolta da Vacina (1904), que se iniciou por causa da postura arbitrária das autoridades da época, as quais expulsaram os negros que habitavam no centro do Rio de Janeiro e impuseram a campanha de vacinação obrigatória.
Além disso, a Revolta da Chibata (1910) também foi fruto do racismo que existia na sociedade, o que se refletia no violento trato que o negro recebia na Marinha. Os negros, com poucas oportunidades de ascensão na corporação e vítimas de castigos físicos, rebelaram-se e foram duramente reprimidos pelo governo. Outro exemplo de como o racismo gerou violência foi na própria Guerra de Canudos (1896-1897).
Cabe o destaque também ao desenvolvimento do racismo científico no Brasil. Como o próprio nome sugere, o racismo científico apropriava-se de discursos e linguagens científicas para promover o racismo no Brasil. Esse discurso manifestou-se principalmente a partir da defesa do “aprimoramento da raça”, também conhecido como eugenia, que visava evitar a miscigenação e promover o embranquecimento da população a partir de ações organizadas pelo próprio Estado.
Atualmente, o racismo ainda é um grave problema da sociedade brasileira, pois, o negro, em grande parte, ainda ocupa uma posição marginalizada. A desigualdade racial existente no Brasil é evidenciada a partir de diversos estudos e estatísticas que comprovam que a violência contra populações negras é maior e que a disparidade salarial entre brancos e negros também é grande. A camada da população negra que tem acesso ao ensino superior também é menor em comparação com a população branca.
Claro que mudanças sensíveis nesses aspectos aconteceram no Brasil, principalmente no século XXI, mas o caminho a ser percorrido é bastante longo. Esse quadro de desigualdade, como mencionado, é uma herança do histórico racista do nosso país e também de décadas de ausência de políticas de inclusão.
Diversas pesquisas divulgadas recentemente mostram que a parcela da população negra com acesso a mais de 12 anos de estudo é de aproximadamente 12%, enquanto a da população branca é de 25,9% em dados de um estudo de 2015 |5|. Além disso, o acesso de lares negros a saneamento básico é de 55,3%, e o de lares brancos é de 71,9% em dados que também são de 2015 |6|.
Pode ser destacada também a questão da violência policial, a qual atinge principalmente os negros. Outro dado de uma pesquisa recente feita no Rio de Janeiro afirma que o medo de ser vítima de violência policial na cidade é maior entre os negros e habitantes de favelas|7|. Isso sem falar nos dados que mostram que a maioria da população carcerária brasileira é composta por negros.
Os exemplos que evidenciam a desigualdade racial no nosso país são muitos. Todos, de uma maneira ou outra, já presenciaram alguma situação que foi fruto desse preconceito racial. Os 130 anos da abolição fazem de 2018 um ano de intenso debate, que, inclusive, pode ser questionado nos vestibulares e Enem.
Pensando nisso, é importante estar por dentro dos principais acontecimentos que envolveram a abolição da escravatura, bem como dos eventos históricos que evidenciam a continuidade do racismo em nosso país. O debate é extenso, e o caminho para promover mais igualdade é longo e difícil.
Por Daniel Neves Silva
Em 2018, completam-se 130 anos da abolição da escravatura no Brasil. Uma data tão importante gera debates e reflexões acerca da inserção do negro na sociedade brasileira naquele período do final do século XIX e também sobre os desafios atuais que a nossa sociedade ainda possui nas questões que envolvem a desigualdade racial que existe em nosso país.
Uma série de dados reforça a existência do racismo no Brasil. Isso é resultado de todo o processo histórico que aconteceu por aqui, que não promoveu políticas públicas efetivas no sentido de inserir os negros na sociedade. Essa situação reflete-se na condição atual do nosso país em índices que evidenciam uma desigualdade racial alarmante.
Sobre essa discussão cabe também algumas reflexões acerca da continuidade do trabalho escravo no nosso país (de maneira ilegal, claro) mesmo após os 130 anos da proibição desse tipo de trabalho no Brasil. A respeito dessa discussão cabe também uma contextualização sobre como aconteceu o processo que causou o fim da escravatura na década de 1880.
Abolição da escravatura no Brasil
A transição do Brasil para o fim da escravatura foi, no entanto, lenta e gradual de uma maneira que atendia os interesses dos grandes defensores desse tipo de trabalho no nosso país: os grandes proprietários do Sudeste brasileiro. A postergação de reformas que caminhassem nesse sentido (da emancipação dos negros) era uma prática brasileira desde o Primeiro Reinado.
Podemos começar pelo fato de que o Brasil, após a sua independência, não apenas manteve como reforçou a importância da escravidão, o que, em geral, foi bastante diferente do que aconteceu na América Espanhola, uma vez que grande parte da América Latina aboliu essa modalidade de exploração do trabalho antes da década de 1860.
A própria proibição do tráfico negreiro ocorreu apenas em 1850 (apesar de existir uma lei de 1831 que já proibia esse comércio) e após grande pressão da Inglaterra sobre o nosso país para que isso acontecesse. Essa lei ficou conhecida como Lei Eusébio de Queirós e só foi decretada após a Inglaterra pressionar o nosso país a partir do Bill Aberdeen.
De toda forma, mudanças práticas nesse sentido só aconteceram a partir de 1870, pois, conforme mencionado, a partir dessa década a causa abolicionista ganhou força no Brasil. Além disso, surgiu uma preocupação entre membros do governo monárquico acerca das tensões que o embate entre abolicionistas e escravocratas poderia gerar.
Essa preocupação ocorria, em grande parte, pela tensão que existia nos EUA entre o Norte abolicionista e o Sul escravocrata. Lá essa tensão foi tão grande que foi em parte responsável pela Guerra de Secessão, que se estendeu durante quatro anos, o que gerou muita destruição material e foi responsável pela morte de 600 mil pessoas.
Além da preocupação em evitar um conflito nesse sentido no Brasil, o governo monárquico preocupava-se também com a reputação internacional do Brasil, pois havia grande pressão internacional para que o país acabasse com a escravidão. Essa pressão intensificou-se depois que Rússia e EUA colocaram fim ao trabalho escravo em 1861 e 1863, respectivamente.
A pressão internacional justificava-se também em parte porque a escravidão, além de ser vista de maneira negativa pelos novos padrões civilizacionais que já despontavam, era enxergada em determinadas partes do globo como um entrave para a modernização do capitalismo, que estava em curso nas nações europeias e nos EUA.
De toda forma, o fortalecimento desse debate fez com que, em 1871, fosse aprovada a Lei do Ventre Livre. Essa lei decretava que o fruto do ventre de todas as escravas do Brasil seria considerado livre, desde que exercesse um período de trabalho como forma de compensação ao dono dos escravos. Assim, o dono que libertasse seu escravo aos oito anos de idade teria direito a uma indenização, mas caso optasse por ficar com o escravo até os 21 anos, não seria indenizado.
Essa lei gerou um debate muito grande na época. Até os abolicionistas ficaram com muitas desconfianças. No entanto, as historiadoras Lilian Schwarcz e Heloísa Starling apontam um elemento importante que evidenciava uma mudança de mentalidade no Brasil e que desagradou consideravelmente aos grandes proprietários:
Havia na lei outro detalhe que desgostou os grandes proprietários e os indispôs com a monarquia. A medida reconheceu formalmente a existência de famílias escravas. Organizaram-se, então, listas de matrícula criadas a partir de um fundo de emancipação, que separava famílias de indivíduos escravos. As decorrências da lei de 1871 não foram, nesse sentido, desprezíveis, uma vez que se invertiam antigos procedimentos: se até ali os chamados “homens livres de cor” é que precisavam se fazer socialmente reconhecidos, agora o ônus da prova ficava com o senhor, que era obrigado a apresentar a matrícula do seu escravo. Sem ela, qualquer pessoa “de cor” era considerada juridicamente livre|1|.
Esse debate seguiu dividindo a sociedade brasileira, e a atuação dos grupos abolicionistas durante a década de 1880 intensificou-se, mas não sem uma reação conservadora. Nessa questão da reação conservadora nesse período, podem ser destacadas a Lei Saraiva, de 1881, e a Lei Saraiva-Cotejipe, de 1885, e também conhecida como Lei dos Sexagenários.
A Lei Saraiva de 1881 criou dispositivos que reorganizaram o sistema eleitoral brasileiro, promovendo a redução dos quadros eleitorais do nosso país. Com essa lei, estipulavam-se eleições diretas no país, mas se exigia o dobro para ter direito ao voto (a renda mínima passou a ser de 200 mil réis), bem como a assinatura do votante (uma estratégia para excluir os analfabetos).
Essa lei pode ser entendida como uma estratégia dos conservadores brasileiros para impedir que o perfil do eleitorado brasileiro se alterasse radicalmente com a aceleração do processo emancipatório do nosso país naquele momento. Além disso, estipulava que o eleitor ideal para essa ala política seria um grupo muito restrito, composto pela elite econômica e branca do nosso país. Assim, os grupos conservadores anteciparam-se às mudanças que poderiam acontecer e tomaram medidas que visavam a restringir o acesso do negro ao voto.
A Lei dos Sexagenários ou Saraiva-Cotejipe, de 1885, decretava que os escravos com idade superior a 65 anos seriam libertos de sua condição de escravos desde que trabalhassem por mais um período de três anos como compensação. A lei foi bastante criticada pelos abolicionistas, pois era considerada uma proposta tímida e conservadora e que tinha como objetivo retardar a abolição.
Apesar dessa reação conservadora, a força do abolicionismo cresceu. Diversas organizações abolicionistas começaram a agir e criar ações para promover a causa e garantir a defesa dos escravos no Brasil. Eventos e manifestações públicas tornaram-se comuns após 1885, e o fortalecimento dessa causa refletiu-se diretamente na postura dos escravizados.
Surgiram, principalmente no Sudeste brasileiro (região que concentrava a maioria dos escravos brasileiros), rebeliões e fugas de escravos. Ao redor do Rio de Janeiro, além de regiões no Vale do Paraíba e no litoral paulista, surgiram diversos quilombos, que abrigavam os escravos que haviam fugido de seu cativeiro. O decreto da abolição no Brasil então, segundo Lilian Schwarcz e Heloísa Starling, foi resultado dessas múltiplas lutas travadas no país:
O fato é que conviviam modalidades, muitas vezes concomitantes, de luta abolicionista: a ação dos próprios escravos, a movimentação dos abolicionistas e a batalha política em nível nacional. O abolicionismo se convertia, portanto, em outra grande causa forjando o sentimento e a imaginação dos brasileiros|2|.
Assim, todo esse processo resultou no que ocorreu em 13 de maio de 1888, dia em que a Princesa Isabel realizou a assinatura da Lei Áurea, ratificando a abolição da escravatura no Brasil de maneira imediata e sem indenização para aqueles que possuíam escravos. Estima-se que cerca de 700 mil escravos tenham conquistado sua liberdade com a lei.
Um dado importante a ser destacado é que o Brasil foi o último país de todo o continente americano a abolir o trabalho escravo em seu território (Cuba foi o penúltimo, abolindo em 1886). Isso deixou evidente o alto grau de conservadorismo do nosso país, que postergou o fim da escravidão até quando fosse possível.
Por fim, vale dizer que a abolição da escravatura não foi acompanhada de políticas que promovessem a integração dos negros libertos na sociedade e muito menos para que obtivessem um meio de subsistência. Isso foi o grande responsável pelo abismo social existente entre negros e brancos no nosso país, visto que medidas racistas foram tomadas durante as décadas seguintes e mantiveram esse quadro de desigualdade social.
O que mudou após a abolição?
Primeiramente, uma questão muito importante ao se pensar em abolição é analisar as formas de integração econômica que deveriam ter sido realizadas. Joaquim Nabuco, por exemplo, afirmava que era de vital importância que a abolição fosse acompanhada de uma reforma agrária para garantir ao liberto uma forma de subsistência e para que o ciclo de dependência do negro não se perpetuasse. Isso não aconteceu, e os negros tiveram poucas oportunidades de se desenvolver economicamente.
O que houve foi exatamente a perpetuação desse quadro de exploração, desigualdade e racismo, pois, conforme relata o historiador Boris Fausto, os escravos no Nordeste, em grande parte, continuaram dependendo dos antigos proprietários para sobreviver. No caso de São Paulo e no Rio Grande do Sul, os ex-escravos tiveram pouco acesso a oportunidades de empregos melhores, pois os empregadores preferiam contratar os imigrantes europeus|3|. Por fim, Boris Fausto sentencia:
Apesar das variações de acordo com as diferentes regiões do país, a abolição da escravatura não eliminou o problema do negro. A opção pelo trabalhador imigrante, nas áreas regionais mais dinâmicas da economia, e as escassas oportunidades abertas ao ex-escravo, em outras áreas, resultaram em uma profunda desigualdade social da população negra. Fruto em parte do preconceito, essa desigualdade acabou por reforçar o próprio preconceito contra o negro. Sobretudo nas regiões de forte imigração, ele foi considerado um ser inferior, perigoso, vadio e propenso ao crime; mas útil quando subserviente|4|.
Além disso, podem ser destacados episódios da história brasileira que ressaltam o preconceito e a violência contra o negro no Brasil. No período da Primeira República, podem ser destacados os eventos relacionados com a Revolta da Vacina (1904), que se iniciou por causa da postura arbitrária das autoridades da época, as quais expulsaram os negros que habitavam no centro do Rio de Janeiro e impuseram a campanha de vacinação obrigatória.
Além disso, a Revolta da Chibata (1910) também foi fruto do racismo que existia na sociedade, o que se refletia no violento trato que o negro recebia na Marinha. Os negros, com poucas oportunidades de ascensão na corporação e vítimas de castigos físicos, rebelaram-se e foram duramente reprimidos pelo governo. Outro exemplo de como o racismo gerou violência foi na própria Guerra de Canudos (1896-1897).
Cabe o destaque também ao desenvolvimento do racismo científico no Brasil. Como o próprio nome sugere, o racismo científico apropriava-se de discursos e linguagens científicas para promover o racismo no Brasil. Esse discurso manifestou-se principalmente a partir da defesa do “aprimoramento da raça”, também conhecido como eugenia, que visava evitar a miscigenação e promover o embranquecimento da população a partir de ações organizadas pelo próprio Estado.
Desafios atuais
Claro que mudanças sensíveis nesses aspectos aconteceram no Brasil, principalmente no século XXI, mas o caminho a ser percorrido é bastante longo. Esse quadro de desigualdade, como mencionado, é uma herança do histórico racista do nosso país e também de décadas de ausência de políticas de inclusão.
Diversas pesquisas divulgadas recentemente mostram que a parcela da população negra com acesso a mais de 12 anos de estudo é de aproximadamente 12%, enquanto a da população branca é de 25,9% em dados de um estudo de 2015 |5|. Além disso, o acesso de lares negros a saneamento básico é de 55,3%, e o de lares brancos é de 71,9% em dados que também são de 2015 |6|.
Pode ser destacada também a questão da violência policial, a qual atinge principalmente os negros. Outro dado de uma pesquisa recente feita no Rio de Janeiro afirma que o medo de ser vítima de violência policial na cidade é maior entre os negros e habitantes de favelas|7|. Isso sem falar nos dados que mostram que a maioria da população carcerária brasileira é composta por negros.
Os exemplos que evidenciam a desigualdade racial no nosso país são muitos. Todos, de uma maneira ou outra, já presenciaram alguma situação que foi fruto desse preconceito racial. Os 130 anos da abolição fazem de 2018 um ano de intenso debate, que, inclusive, pode ser questionado nos vestibulares e Enem.
Pensando nisso, é importante estar por dentro dos principais acontecimentos que envolveram a abolição da escravatura, bem como dos eventos históricos que evidenciam a continuidade do racismo em nosso país. O debate é extenso, e o caminho para promover mais igualdade é longo e difícil.
|1| SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 300.
|2| Idem, p. 310.
|3| FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 188.
|4| Idem, p. 189.
|5| Brasil mantém históricas desigualdades raciais e de gênero. Para acessar, clique aqui.
|6| O tamanho da desigualdade racial no Brasil em um gráfico. Para acessar, clique aqui.
|7| Medo da violência policial e de acusações injustas é maior entre a população negra do Rio. Para acessar, clique aqui.
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