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quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

CRÔNICA DO DIA: MARÉ PRETA DE BEM VIVER

Minha pele sem melanina me fazia diferente em meio àquelas mulheres negras que chegavam em caravanas. Eram Centenas de ônibus vindos dos quatro cantos do país.  Brasília acordou em estado de tambor, como se alguém tivesse batido o coração da cidade com as próprias mãos naquela terça-feira, 25 de novembro. A luz do sol do planalto central que costuma escorrer pelos edifícios modernistas de Niemeyer pareceu tremular, como se prestasse reverência ao cortejo que ainda se formava diante do Museu Nacional da República. Antes do relógio marcar onze horas, os primeiros tambores já respiravam no ar, era um som que não batia no ouvido, mas na memória.

Eram milhares.
Eram unidas.

Eram as mulheres negras do Brasil inteiro, caminhando para escrever mais um capítulo da sua própria história.

Senti algo que nunca tinha sentido antes, um sentimento que trazia a sensação de estar produzindo a reportagem de minha vida. Em meio ao mar de lenços, tranças, saias rodadas e palavras afiadas, caminhava dona Laurinda 68 anos, quilombola da Baixada Maranhense. Usava um vestido lilás e um colar de sementes que fora de sua avó.

            - Isso aqui já marchava antes de mim. -  Dizia ela.

Ao seu lado, o neto Lucas estudante de Ciências Sociais. Ele não marcharia, ficaria nos arredores para ajudar com água, orientações e acolhimento, mas era ele quem parecia aprender mais enquanto caminhava.

- Vó, é sempre assim? Essa força tanta quando a mulherada se junta? -  Perguntou Lucas, enquanto observava a multidão crescer.

Ela sorriu com aquele canto de boca de quem já viu o mundo tentar esconder sua existência.

-  Meu filho, força a gente sempre teve. O que faltava era o mundo parar pra enxergar.- 

- E agora enxerga?

-  Agora a gente obriga o povo a botar os óculos da consciência. – Disse sorrindo.


Mais adiante, vinha Jéssica, 32 anos, ribeirinha do Amapá, mãe solo e marisqueira. Nunca tinha saído da região onde nasceu. Foi o marido de criação, “não é pai, mas é quem cuida”, quem insistiu que ela fosse. Chamava-se Carlito, homem magro e de fala mansa, que viu a companheira perder primas, vizinhas e amigas para a violência doméstica que corrói silenciosamente a vida das mulheres.

Na porta de casa, antes da viagem, ele segurou as mãos dela com força:

- Vá, Jéssica. Vá e fale por todas elas.
-  E se ninguém ouvir? - Perguntou ela, receosa.

- Tem mais de dez mil mulheres indo contigo. Não tem como não ouvir. E se alguém fingir que não ouviu, a gente grita mais alto aqui.

Agora, em Brasília, Jéssica caminhava com os olhos úmidos, repetindo baixinho:

-  “Por elas… por elas… por nós…”

Mais ao centro da marcha, quase flutuando acima das bandeiras, estava Professora Núbia, 54 anos, intelectual da periferia de Bacabal, autora de livros sobre mulheres negras na educação. Ela conduzia um pequeno grupo de jovens, entre elas Marina, indígena Tukano, e Dandara, estudante de Direito. Em coro, entoavam uma frase que parecia empurrar a marcha adiante:

-  “Se o Brasil nasceu do nosso trabalho, a reparação nasce do nosso passo!”

Marina completava:

-  E do nosso canto. Sem canto não tem cura.

Foi aí que um grupo de homens que acompanhava a marcha, maridos, filhos, amigos e companheiros se aproximou e fez um círculo de proteção ao redor. Não invadiram o espaço; apenas reforçaram as bordas, como quem entende o limite entre apoio e protagonismo.

Um deles, Pedro, servidor público de Brasília, virou para o amigo:

- Hoje não é dia da gente falar. É dia da gente aprender.
- Aprende o quê? -  Perguntou o outro, meio confuso.

-  A ficar do lado sem atrapalhar. Isso já é meio século de atraso recuperado.

As mulheres riram ao ouvir de longe.


A marcha seguiu pela Esplanada dos Ministérios como um rio que lembrava o caminho esquecido. Cartazes pediam o fim da violência doméstica, o combate ao feminicídio, políticas de reparação histórica, respeito aos territórios, ao corpo e à autonomia das mulheres negras. O ar era pesado de um lado -  memória, luta - e leve do outro: esperança.

À frente da caravana maranhense, Dona Laurinda ergueu o punho e gritou para as outras:

-  MINHA AVÓ FOI PARIDA NA SENZALA. MINHA MÃE, NA PALHOÇA. EU NASCI NUM QUILOMBO. MINHA NETA VAI NASCER NUM BRASIL MELHOR!

O grito atravessou quadras, postes, prédios, asfaltos.
Havia quem chorasse.
Havia quem sorrisse.
Havia quem caminhava só para não desabar de emoção.

Quando o cortejo chegou à frente do Ministério da Justiça, a coordenadora da marcha pediu um minuto de silêncio. Os tambores cessaram como se obedecessem a uma memória maior.

E naquele um minuto, Brasília escutou o país inteiro respirando.

Foi Dona Jacira quem, sem aviso, quebrou o silêncio num sussurro que virou trovão:

- A gente não veio pedir. A gente veio cobrar. Quem plantou a dor fomos nós? Então por que o pagamento demora tanto?

Jéssica levantou sua faixa:

“Reparação não é favor. É justiça.”

Professora Núbia arrematou:

-  Bem viver é direito, não prêmio!

E Lucas, mesmo jovem, mesmo ainda aprendendo, completou:

-  E um país que não repara suas mulheres negras não merece chamá-las de cidadãs

Ao final, quando o sol começava a cair atrás do Congresso, a marcha se dispersou devagar. Não havia cansaço, mas uma espécie de força que só existe quando milhares caminham com o mesmo propósito. Jéssica encontrou Carlito por telefone:

- Conseguiu falar? - Perguntou ele.
-  Falei. E fui ouvida. Aqui e aí dentro de mim.
- Então já valeu. Volte orgulhosa.

Dona Laurinda apertou o braço do neto:

- Viu, Lucas? Isso não é só uma marcha. Isso é aviso.
- Aviso de quê, vó?

- De que se tentarem apagar a gente de novo… o Brasil inteiro vai ficar no escuro.

Ela sorriu. Ele sorriu.
E Brasília, mesmo silenciosa, parecia ainda pulsar no ritmo dos tambores.

Porque naquele 25 de novembro, as mulheres negras não caminharam apenas por elas, caminharam por tudo o que o Brasil pode ser, se algum dia tiver coragem de olhar de frente para as mãos que o construíram.

José Casanova

Professor, Jornalista, Escritor e Cronista membro da

Academia Bacabalense de Letras

Academia Mundial de Letras da Humanidade

Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil