Minha pele sem
melanina me fazia diferente em meio àquelas mulheres negras que chegavam em
caravanas. Eram Centenas
de ônibus vindos dos quatro cantos do país. Brasília acordou em estado de tambor, como
se alguém tivesse batido o coração da cidade com as próprias mãos naquela terça-feira, 25 de
novembro. A luz do sol do planalto central que costuma escorrer pelos edifícios
modernistas de Niemeyer pareceu tremular, como se prestasse reverência ao
cortejo que ainda se formava diante do Museu Nacional da República. Antes do
relógio marcar onze horas, os primeiros tambores já respiravam no ar, era um
som que não batia no ouvido, mas na memória.
Eram milhares.
Eram unidas.
Eram as mulheres negras do Brasil inteiro, caminhando
para escrever mais um capítulo da sua própria história.
Senti algo que nunca tinha
sentido antes, um sentimento que trazia a sensação de estar produzindo a
reportagem de minha vida. Em meio ao mar de lenços, tranças, saias rodadas e
palavras afiadas, caminhava dona
Laurinda 68 anos, quilombola da Baixada Maranhense. Usava um vestido
lilás e um colar de sementes que fora de sua avó.
- Isso aqui já marchava antes de mim.
- Dizia ela.
Ao seu lado, o neto Lucas estudante de Ciências Sociais.
Ele não marcharia, ficaria nos arredores para ajudar com água, orientações e
acolhimento, mas era ele quem parecia aprender mais enquanto caminhava.
- Vó, é sempre assim? Essa força tanta quando a mulherada se junta?
- Perguntou Lucas, enquanto observava a
multidão crescer.
Ela sorriu com aquele canto de
boca de quem já viu o mundo tentar esconder sua existência.
- Meu filho, força a gente sempre teve. O que
faltava era o mundo parar pra enxergar.-
- E agora enxerga?
- Agora a gente
obriga o povo a botar os óculos da consciência. – Disse sorrindo.
Mais adiante, vinha Jéssica, 32 anos, ribeirinha do Amapá,
mãe solo e marisqueira. Nunca tinha saído da região onde nasceu. Foi o marido
de criação, “não é pai, mas é quem cuida”, quem insistiu que ela fosse.
Chamava-se Carlito, homem magro
e de fala mansa, que viu a companheira perder primas, vizinhas e amigas para a
violência doméstica que corrói silenciosamente a vida das mulheres.
Na porta de casa, antes da
viagem, ele segurou as mãos dela com força:
- Vá,
Jéssica. Vá e fale por todas elas.
- E se ninguém ouvir? - Perguntou ela,
receosa.
- Tem mais
de dez mil mulheres indo contigo. Não tem como não ouvir. E se alguém fingir
que não ouviu, a gente grita mais alto aqui.
Agora, em Brasília, Jéssica
caminhava com os olhos úmidos, repetindo baixinho:
- “Por elas… por elas… por nós…”
Mais ao centro da marcha, quase
flutuando acima das bandeiras, estava Professora
Núbia, 54 anos, intelectual da periferia de Bacabal, autora de livros
sobre mulheres negras na educação. Ela conduzia um pequeno grupo de jovens,
entre elas Marina, indígena
Tukano, e Dandara, estudante de
Direito. Em coro, entoavam uma frase que parecia empurrar a marcha adiante:
- “Se o
Brasil nasceu do nosso trabalho, a reparação nasce do nosso passo!”
Marina completava:
- E do
nosso canto. Sem canto não tem cura.
Foi aí que um grupo de homens que
acompanhava a marcha, maridos, filhos, amigos e companheiros se aproximou e fez
um círculo de proteção ao redor. Não invadiram o espaço; apenas reforçaram as
bordas, como quem entende o limite entre apoio e protagonismo.
Um deles, Pedro, servidor público de Brasília, virou para o amigo:
- Hoje não
é dia da gente falar. É dia da gente aprender.
- Aprende o quê? - Perguntou o outro,
meio confuso.
- A ficar do lado sem atrapalhar. Isso já é
meio século de atraso recuperado.
As mulheres riram ao ouvir de
longe.
A marcha seguiu pela Esplanada dos
Ministérios como um rio que lembrava o caminho esquecido. Cartazes pediam o fim
da violência doméstica, o combate ao feminicídio, políticas de reparação
histórica, respeito aos territórios, ao corpo e à autonomia das mulheres negras.
O ar era pesado de um lado - memória,
luta - e leve do outro: esperança.
À frente da caravana maranhense,
Dona Laurinda ergueu o punho e gritou para as outras:
- MINHA AVÓ FOI PARIDA NA SENZALA. MINHA MÃE,
NA PALHOÇA. EU NASCI NUM QUILOMBO. MINHA NETA VAI NASCER NUM BRASIL MELHOR!
O grito atravessou quadras, postes, prédios,
asfaltos.
Havia quem chorasse.
Havia quem sorrisse.
Havia quem caminhava só para não desabar de emoção.
Quando o cortejo chegou à frente
do Ministério da Justiça, a coordenadora da marcha pediu um minuto de silêncio.
Os tambores cessaram como se obedecessem a uma memória maior.
E naquele um minuto, Brasília
escutou o país inteiro respirando.
Foi Dona Jacira quem, sem aviso,
quebrou o silêncio num sussurro que virou trovão:
- A gente não veio pedir. A gente veio cobrar. Quem plantou a dor fomos
nós? Então por que o pagamento demora tanto?
Jéssica levantou sua faixa:
“Reparação não é favor. É
justiça.”
Professora Núbia arrematou:
- Bem
viver é direito, não prêmio!
E Lucas, mesmo jovem, mesmo ainda
aprendendo, completou:
- E um
país que não repara suas mulheres negras não merece chamá-las de cidadãs
Ao final, quando o sol começava a
cair atrás do Congresso, a marcha se dispersou devagar. Não havia cansaço, mas
uma espécie de força que só existe quando milhares caminham com o mesmo
propósito. Jéssica encontrou Carlito por telefone:
- Conseguiu falar? - Perguntou ele.
- Falei. E fui ouvida. Aqui e aí dentro de mim.
- Então já valeu. Volte orgulhosa.
Dona Laurinda apertou o braço do
neto:
- Viu, Lucas? Isso não é só uma marcha. Isso é aviso.
- Aviso de quê, vó?
- De que se
tentarem apagar a gente de novo… o Brasil inteiro vai ficar no escuro.
Ela sorriu. Ele sorriu.
E Brasília, mesmo silenciosa, parecia ainda pulsar no ritmo dos tambores.
Porque
naquele 25 de novembro, as mulheres negras não caminharam apenas por elas,
caminharam por tudo o que o Brasil pode ser, se algum dia tiver coragem de
olhar de frente para as mãos que o construíram.
José
Casanova
Professor,
Jornalista, Escritor e Cronista membro da
Academia
Bacabalense de Letras
Academia
Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da
Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil














