sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

CRÔNICA DO DIA: Um homem de cor

 

Desculpa. Escrevo porque foi toda uma vida de agradável solidão, por isso te provoco a mim entender...  Hoje acordei desconfiado de mim. Não é raro. Há dias em que me observo como personagem mal explicado, desses que entram na história pela porta dos fundos e ainda assim insistem em permanecer. Escrevo para organizar esse incômodo, não para resolvê-lo. A escrita nunca resolveu nada; apenas tornou o caos mais elegante. O espelho é um juiz indiscreto e, pior, costuma absolver o que a sociedade condena e condenar o que ela absolve.

Nasci com a vida estreita. Não de ideias, que essas sempre me pareceram largas como uma avenida ainda por abrir, mas de circunstâncias. Fui menino de morro, de chão irregular, neto de quem carregou ferros na carne e a liberdade nos bolsos furados. A escola me chegou aos poucos, como chega a água a quem aprende a cavar cisterna. Aprendi cedo que as palavras são atalhos. Quando a porta não abre, a frase escorre por baixo.

A epilepsia veio como um relógio defeituoso. Nunca avisa a hora exata, mas cobra o preço do atraso. Em cada crise, uma pequena morte privada, um susto doméstico, uma vergonha pública. Aprendi a sentar-me no banco da praça e observar a vida passar como quem toma notas para um livro que ainda não sabe se escreverá. Talvez daí venha minha mania de narrar a mim mesmo. Há quem me ache frio. Enganam-se. Apenas descobri que a ironia é uma forma educada de chorar.

As mesmas pessoas que fizeram de tudo para apagar minha verdadeira identidade, diziam que sou um gênio da Literatura. Vejo-me como gênio? Às vezes, sim. Em outras, como um burocrata da frase. Mas quando me vejo grande, não é por vaidade. É por defesa. O mundo gosta de diminuir aquilo que não consegue enquadrar. Precisei afirmar minha estatura para não caber no rótulo que me preparavam. Há um prazer secreto em saber-se capaz de mover ideias como quem move peças num tabuleiro invisível. Se sou gênio, é porque sobrevivi ao método paciente de me tornarem pequeno.

Sou um homem de cor e isto era visto como um defeito. Sou consciente que fui politicamente tímido demais. Digo isso aqui, neste papel íntimo, porque o papel não me interrompe. Na vida, calei muitas vezes. Não por ignorar o açoite, mas por saber que há chicotes que mudam de nome quando entram nos salões. O sistema que me cercava preferia que eu fosse discreto, quase transparente. Denunciei quando pude, insinuei quando convinha, sorri quando a denúncia aberta me fecharia a porta. A escravidão me atravessou como atravessa o país inteiro. Não precisei gritar sempre para provar que sangrava.

Escrevi sobre defuntos que falam, não porque os mortos sejam mais eloquentes, mas porque os vivos mentem com mais convicção. Fiz um narrador que se confessa sem remorso, e nisso confessei um pouco de mim. Inventei ciúmes que roem o casamento como cupim de biblioteca, porque conheço o gosto amargo da suspeita e o prazer indecente de observar o outro tropeçar na própria vaidade. Quem me lê atento percebe que não absolvo ninguém. Nem a mim.

Carolina foi meu melhor poema.  Meu parágrafo mais bem-acabado. O grande amor da minha  enigmática vida.  Em dias de crise, basta lembrar-lhe o gesto simples de arrumar a casa para que a desordem do mundo se torne administrável. Amá-la foi um exercício de precisão. Nada de arroubos desnecessários, apenas a constância de quem sabe que o afeto se prova no cotidiano. Se escrevo com economia, é porque aprendi com ela que o essencial não pede adjetivos.

Nunca falei da minha pele nos livros. Não por vergonha, mas por estratégia. Sabia que me leriam menos se me vissem mais. Preferi que a frase chegasse antes do retrato. Ainda assim, mexeram no retrato. Clarearam-me a face, alisaram-me o destino, adulteram-me a certidão de óbito como quem revisa um texto para agradar ao editor. Branco, escreveram. Branco, como se a genialidade precisasse de tinta específica para circular nos salões. Descobri tarde que o papel também pode ser cúmplice.

Há imagens minhas que não reconheço. Parecem parentes distantes que herdaram o sobrenome e perderam o sangue. O embranquecimento foi um acordo silencioso. Para que minha obra fosse aceita, era preciso que eu fosse menos eu. Aceitei? Em parte. Resisti? Também. A literatura é uma arte de sobrevivência. Cada frase minha carrega um desvio, um riso enviesado, uma resposta que parece conversa e é recusa.

Quando a crise existencial me visita, penso se valeria a pena ter sido mais explícito. Se deveria ter gritado nomes, quebrado pratos, incendiado salas. Em seguida, lembro que o fogo ilumina pouco e consome rápido. Preferi a brasa. Ela dura mais, esquenta aos poucos e, quando percebida, já deixou marca.

 Às vezes sinto que converso com um leitores e personagens que ainda não nasceram. Outras, com um país que finge não se reconhecer no espelho. Não me peçam confissões diretas. Dou-as por metáfora. Não me cobrem heroísmo. Entrego lucidez. Se há algo de mágico nisso tudo, não é feitiço. É método.

Continuo escrevendo porque é o único modo que encontrei de permanecer inteiro num país que insiste em fragmentar seus próprios escritores. Se me tornei enigma, foi por sobrevivência. Se me fiz silêncio, foi por estratégia. No alto da rua onde moro, observo a cidade com olhos atentos e ironia afiada, mexendo palavras como quem prepara feitiços discretos. Alguns dizem que faço magia. Não os contradigo. Afinal, sempre foi mais fácil chamar de bruxaria aquilo que assusta no Cosme Velho.

José Casanova
Professor, Jornalista, Escritor e Cronista
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

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