Dizem que o xadrez é um universo onde o tempo se curva. Que há, no pequeno tabuleiro de sessenta e quatro casas, mais possibilidades de movimentos do que átomos no cosmos. É como se, dentro daquele quadrado de madeira, coubesse o próprio mistério da existência.
Para Pablo, 24 anos, o xadrez nunca foi apenas um jogo. Foi casa, foi abrigo, foi linguagem quando as palavras se escondiam atrás de portas trancadas. Diagnosticado com autismo desde pequeno, Pablo sempre sentiu o mundo como um lugar barulhento e desconexo, onde as peças raramente se encaixavam. Mas no xadrez — ah, no xadrez — tudo fazia sentido. Ali, as regras eram claras, o mundo era previsível, os movimentos seguiam uma lógica silenciosa que conversava direto com a arquitetura da sua mente.
Naquele sábado, o salão do Clube Bacabalense de Xadrez , em um evento organizado pela CBX, parecia respirar como um grande organismo. Era uma tarde especial: Rafael Leitão, o grande mestre, conduziria uma simultânea contra trinta e cinco jogadores amadores. Trinta e cinco tabuleiros. Trinta e cinco batalhas abertas ao mesmo tempo. Um espetáculo raro.
Pablo se inscreveu com seu rating de 1579, um número modesto para os rankings do circuito, mas grandioso dentro da sua jornada pessoal.
Quando soube que enfrentaria Rafael, sentiu as mãos suarem. Seu pai, que o acompanhava, sussurrou-lhe:
— Vai lá, filho. Faz o que você ama. O resto é só barulho.
Os jogadores se alinharam como soldados cerimoniais. Rafael caminhava de mesa em mesa, o tempo cronometrado, os olhos atentos, um sorriso leve. Quando chegou ao tabuleiro de Pablo, olhou-o com genuíno interesse.
— Boa sorte, campeão. — disse, com a simplicidade de quem já enfrentou mil batalhas.
O jogo começou.
O xadrez é estranho: uma guerra sem gritos, onde a violência se dissolve em raciocínio numa paz infinita . E cada peça traz consigo uma filosofia particular.
Os peões, pequenos e limitados, avançam um passo por vez. São os operários da sociedade , os construtores de possibilidades. Mas escondem um segredo: podem atravessar o tabuleiro e se transformar. Pablo sempre admirou isso. Talvez, no fundo, ele fosse um peão cruzando lentamente seu próprio campo de batalha.
As torres são retas, firmes, vigiam colunas e fileiras como faróis antigos. Os cavalos dançam em L, pulam por onde ninguém espera — um pouco como os pensamentos de Pablo, que ziguezagueavam por atalhos imprevistos. Os bispos, fiéis ao seu caminho diagonal, deslizam como quem corta o tecido do tempo. A dama — ou rainha — é pura liberdade: percorre o tabuleiro com a força de quem pode tudo, mas que carrega também o peso da responsabilidade. Lugar de mulher é onde ela quiser. E o rei, frágil e cercado, nos lembra que até o mais protegido dos seres pode ser derrubado.
Pablo jogava devagar, mas com firmeza. Não se importava com o público, com os flashes, com as vitórias ao lado ou com as derrotas ao fundo. Ele estava ali, inteiro, presente, dentro de um universo onde as peças falavam uma língua que ele compreendia como ninguém.
A simultânea avançava, tabuleiros se encerravam. Rafael vencia, como era de se esperar, mas quando retornava à mesa de Pablo, sempre demorava um pouco mais.
— Você joga bem — comentou Rafael, na terceira volta.
Pablo sorriu, um sorriso discreto, quase sussurrado:
— Obrigado. Eu gosto de pensar devagar.
— Pensar devagar às vezes é melhor. O problema é que o mundo tem pressa. - Afirmou Rafael Leitão.
— No xadrez, não. Aqui o mundo me espera. - Respondeu Pablo.
Rafael não respondeu, mas seus olhos disseram tudo.
Pablo perdeu a partida depois de uma defesa francesa que resistiu mais de vinte lances. Perdeu, sim, mas não saiu derrotado. O verdadeiro prêmio estava ali: o diálogo, o espaço, o jogo limpo, o tempo respeitado. No Xadrez não há perdedores, mas almas em evolução.
O xadrez, para ele, era mais que saúde mental — era equilíbrio. Era terapia e arte. Era filosofia concreta, onde a beleza se desenha entre erros e acertos, e onde até a derrota tem um sabor doce, porque tudo pode ser aprendido.
Quando a simultânea terminou, Rafael aproximou-se de Pablo mais uma vez:
— Espero te ver de novo. Você joga bonito.
— Eu também espero. — disse Pablo, baixinho, como quem promete a si mesmo.
E assim, enquanto os tabuleiros eram desmontados e as peças voltavam para suas caixas — pequenas estrelas de madeira que aguardam novos universos — o mistério continuava intacto:
Mais possibilidades que átomos.
Mais caminhos que os olhos podem alcançar.
Mais encontros do que o mundo parece oferecer.
O xadrez, afinal, nunca termina. Ele apenas muda de casa.
Xeque-mate!!!
José Casanova
Professor, Jornalista e Escritor
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Membro da Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil














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