As festas nordestinas sempre foram entendidas por mim como um dos maiores ativos da região. Não somente pelo aspecto cultural simplesmente, porém pelos econômicos, sociais, comunitários…Seja pelo ponto de vista simbólico, seja pela afirmação da cidadania e da autoestima da população. Sendo o São João um momento ímpar desta valorização e de reconhecimento dos criadores e produtores culturais em todos os sentidos e gêneros: cantores, compositores, músicos, cantadores, mestres, brincantes, bumba-bois, cordelistas, quadrilhas, cacuriás, grupos de danças variados etc.
Este celeiro de produção criativa tem se transformado ultimamente num grande filão econômico, e a música tem sido o seu carro-chefe. Este sentimento e o pressentimento de possibilidades de grandes negócios atraíram a atenção da poderosa indústria cultural do país; de produtoras que vendem pacotes de “atrações nacionais” o ano inteiro e todo ano para estados e municípios, modificando os lugares do acontecer solidário, tão característico dos nossos festejos populares, assim entendidos pelo professor Milton Santos, e colocando nos referidos espaços um repertório tão banalizado e descartável, alheio à história e à tradição locais de nossas genuínas manifestações, por muito tempo desprezadas e até mesmo reprimidas.
Tenho tocado nesta tecla já faz algum tempo, preocupado também em não enveredar pelo xenofobismo barato nem pelo bairrismo discriminatório. Como diria o grandioso Paulinho da Viola: “Sem preconceito, ou mania de passado”, estamos assistindo a um espetáculo dantesco, com certeza patrocinador de danos irreparáveis a curto, médio e longo prazo no meio ambiente cultural. Um desmonte contínuo das conquistas no plano das políticas de cultura, e um desfazimento da construção coletiva de mãos e mentes caprichosas de várias gerações: Valdelino Cécio, Michol Carvalho, Arlete Nogueira da Cruz Machado, Nélson Brito, Terezinha Jansen, Carlos de Lima, Domingos Vieira Filho, D. Celeste, Mestre Marcelino, Américo Azevedo, D. Zelinda Lima, Nerine Lobão, Moraes, Humberto, Mestre Felipe…
Aportam por aqui oportunismos e interesses de todos os gêneros e estilos: políticos, midiáticos, eleitorais, digitais, econômicos… Até com gente fabricando um São João inteirinho pra chamar de seu, sem o mínimo conhecimento ou respeito pelos significados simbólicos e ancestrais desta nossa rica tradição popular. Herança deixada por nossos avós, como bem lembrado pelos versos do genial Guriatã do Maracanã.
Transformar a festa popular mais legítima do Nordeste em palco para a espetacularização da cultura popular e consagração dos consagrados, que passam o ano inteiro batendo recordes e mais recordes de acessos nas plataformas digitais de música, impulsionados pela monetização da imagem e da alma e pelo direcionamento dos algoritmos, torna-se um verdadeiro sacrilégio cultural. Se bancados por dinheiro público, mais sacrilégio e sacanagem ainda!
Penso que passamos a lidar com algo que eu atreveria de chamar de uma espécie de latifúndio cultural. Uma apropriação por poucos das grandes fatias dos orçamentos públicos e privados da cultura. Um coronelismo cultural em plena era digital, onde repertório e programações oficiais espelham e repetem os gostos dos governantes estaduais e municipais, muitos deles ligados ao agronegócio; tratando de um festejo público como uma festa privada em uma de suas muitas fazendas.Um casamento (im)perfeito entre o latifúndio geográfico e o latifúndio cultural, ungidos pela desigualdade, excludência e invisibilidade artística, além da negação da diversidade.
A brincadeira e a morte do boi, para nós maranhenses, sempre teve um outro entendimento, e significados que estão diretamente ligados com nossas crenças, cultos, credos e ancestralidades. Atualmente, os coveiros da cultura colocam pás de terra nestas manifestações, sob a desculpa esfarrapada de que é isso que o povo quer – a contratação de “artistas nacionais” a peso de ouro, para encharcar as praças e arenas da massa desinformada e despossuída do acesso aos bens culturais.
Prefiro ficar com a sabedoria do irretocável Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas quer também o que não sabe.” O direito de escolha resta sacrificado, principalmente quando a democracia, no campo cultural, é atropelada pela vontade e pelo gosto particular dos governantes, geralmente ignorantes e autoritários.
Quando eu me lembro da minha bela mocidade…Quá Eulália, eu não fico pra dormir…Mãe Catirina, poupa esse boi! … Antes que aquele outro,o da Lua, resolva cercar o Planeta do Brasil…Como se não existisse o Sol…Lua, Lua cheia / Que nasce no meio das águas… No mês de maio / Tá todo mundo ensaiando / E desse jeito / Eu não vou ficar aqui…Essa matraca, já conheço, seu menino / Já esmurrou muito destino / Já fez cantador penar!… Agora que eu quero ver se couro de gente é pra queimar!
(*) Poeta e compositor
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