quarta-feira, 28 de maio de 2014

Livro da Ditadura mantém atualidade 42 anos depois

Por Cezar Xavier


Durante o lançamento, ocorrido em 24 de maio no Memorial da Resistência do Estado de São Paulo, muitos chegaram curiosos e sabendo pouco sobre o livro, que circulou muito restritamente nos anos de chumbo, mas que causou impacto com denúncias que os brasileiros não podiam ver na imprensa da época. Estiveram presentes ao lançamento pessoas que sofreram as atrocidades ali relatadas e que tiveram contato com a publicação à época. Também compareceram jovens que apenas agora estão tomando contato com o tema.

A coordenadora do Memorial da Resistência, Kátia Filipini afirmou que o lançamento do livro é também uma homenagem aos antigos militantes de AP (Ação Popular), entre os quais, aqueles que fizeram o livro, e a tantos outros que lutaram e tombaram naquele período. “A memória do país está em disputa. Enquanto a Marcha com Deus, em defesa do golpe militar não reuniu nem mil pessoas em todo o país, conseguimos realizar 450 atos simultâneos em repúdio à ditadura, sendo que, só no Doi Codi, aqui em São Paulo, tínhamos 1400 pessoas”, destacou ela.



Representando o Núcleo de Preservação da Memória Política, Ivan Seixas coordenou o debate com exposições dos autores, os jornalistas Bernardo Joffily, Carlos Azevedo e Duarte Pacheco Pereira. O autor da capa do livro, o designer Elifas Andreato, também participou da sessão de autógrafos, ao final do evento. Ele lembrou que o livro foi feito em gráfica clandestina, datilografado numa IBM, desenhado em estêncil.


Caráter democrático e indignado

Joffily começou ressaltando a importância da publicação, dizendo que se trata de um livro que “vale a pena ser lido em 2014”. Para ele, o Livro Negro da Ditadura Militar é a prova que derruba as tentativas de inocentar os ditadores de então, ao dizer que se tratava de uma guerra entre vilões de direita e de esquerda. “Ninguém há de negar que este livro tem um profundo e entranhado espírito democrático, indignação e força nas denúncias que faz , de coisas que estavam acontecendo ali. Tem a plataforma explícita, a amplitude e a noção de que a luta era de todos, da igreja, de Rubens Paiva, de quem pegava em armas e de quem não pegava. Era uma batalha de todo brasileiro que tinha vergonha na cara”, explica Joffily. Para ele, é este caráter amplo e democrático que garantiu a derrota dos ditadores. “Perdemos todas as batalhas militares e ganhamos de goleada a guerra político-ideológica”.

Embora houvesse obras do comandante Carlos Marighella sendo distribuídas clandestinamente, à época do Livro Negro da Ditadura, Bernardo lembra que aquelas tinham o objetivo de orientar militarmente a resistência. “A nossa ambição era de denunciar os crimes da ditadura e alcançar uma mobilização que acabou por ocorrer”, explicou.

Bernardo lembra que tinha apenas 21 anos de idade, recém-entrando no aparato de agitação e propaganda de AP. “Escrevi uns três ou quatro capítulos e ajudei a datilografar. Nitidamente, eu e a Jô Moraes [atual deputada federal pelo PCdoB de Minas Gerais], éramos os ‘focas’ daquela redação”, contou.

Após revelar que Duarte foi “o pai da criança”, Joffily abordou a polêmica sobre a impropriedade do nome do livro na atualidade. “Hoje, nenhuma pessoa com desconfiômetro daria um nome como esse”. Mas, salienta que a atenuante para o caso está no fato de que este debate sobre o uso discriminatório e racista das palavras – como denegrir – estava ainda em gestação à época da elaboração do livro. Como ainda estava no começo a luta anti-racista. “Em 1972 estávamos concentrados na luta contra a ditadura militar. Enquanto não acabássemos com ela, não poderiam aflorar a quantidade de movimentos e demandas que vieram depois”.

Circunstâncias editoriais

O jornalista Carlos Azevedo, que foi um dos criadores da revista Realidade, disse que, no início, subestimou a proposta de reedição do Livro Negro. Relendo o trabalho ele voltou a constatar que aquele “é um levantamento primoroso tendo em vista o momento em que vivíamos, feito na mais profunda clandestinidade”, afirmou. Azevedo destacou as dificuldades que implicava participar de um projeto como aquele. Não podendo se reunir em casas ou em escritórios, era preciso marcar encontros periódicos em pontos na rua, com tempo de espera calculado, sempre caminhando. “Costumávamos dizer que uma boa reunião ia da Penha à Lapa para resolver todos os problemas”, brincou ele, referindo-se as caminhadas entre os distantes bairros da Zona Leste e da Zona Oeste de São Paulo.

“Puxa, que documento que se fez naquelas circunstancias, enfrentando um inimigo extremamente poderoso que não respeitava o direito de ninguém.” “Aquela equipe não era mole não!” disse Azevedo sob aplausos do público. Azevedo também fazia o jornal Libertação, órgão oficial da AP, que foi publicado mensalmente durante oito anos, entre 1968 e 1975. A gráfica nunca foi pega pela repressão.


Força e limite do Livro Negro

Duarte Pacheco Pereira afirmou que a diferença fundamental do Livro Negro da Ditadura Militar dos demais livros de denúncia publicados na época era o público alvo. Queriam que as informações sobre sequestros, tortura, mortes e desaparecimentos dos opositores chegassem aos brasileiros para estimular a resistência, enquanto outros documentos visavam o público estrangeiro.

O jornalista Duarte Pacheco Pereira ressaltou o fato das histórias serem suficientemente dramáticas e graves para justificar o impacto que teve à época. “O Livro antecipa questões que viriam depois, como as casas clandestinas, para onde iam todos aqueles que a ditadura queria fazer desaparecer sem deixar vestígios”, disse ele. Para as casas clandestinas iam aqueles militantes que estavam nas listas para serem mortos. Uma sobrevivente, Inês Etiene, e o militar Paulo Malhães, confirmam as práticas macabras de cortes de dedos e retiradas de dentes para evitar identificação de corpos. “Os métodos descritos no Livro Negro são terríveis, inomináveis e ignominiosos, mas muita coisa bem pior viria depois de 1972”, salientando ser esta temporalidade uma das limitações do Livro Negro.

Sobre a polêmica da luta antirracista, ele lembrou que o nome do livro foi uma contraposição ao Livro Branco, publicado pelo Governo Médici em 1971, para defender o governo fora do país, porque as denúncias já chegavam ao exterior. O livro do governo teve vida curta, pois não trouxe uma avaliação positiva para o governo.

Duarte lamentou que haja historiadores que hoje tentam defender a ditadura e argumentem que as torturas só ocorreram depois do AI-5. Ou seja, que até então não se tratava de uma ditadura. A ditadura, para ele, mata e tortura desde os primeiros momentos. Citou os casos de massacres ocorridos no Nordeste nos primeiros dias do golpe. “Centenas de camponeses foram assassinados e largados nos canaviais. Gregório Bezerra foi arrastado nu pelas ruas de Recife, à luz do dia! O corpo do sargento Raimundo Manuel Soares foi encontrado com as mãos amarradas no Rio Guaíba, em Porto Alegre, poucos dias após o golpe”, pontuou ele.


O jornal Correio da Manhã, que estimulara as mobilizações a favor do golpe, começou a criticar esses crimes cometidos pela ditadura. O jornalista Márcio Moreira Alves, em 1966, lançou o livro “Tortura e torturados”, cuja primeira edição foi apreendida. “Algumas das histórias do Livro Negro têm origem naquelas primeiras denúncias”.

As denúncias do Livro Negro da Ditadura vão se confirmando conforme os prisioneiros políticos vão sendo libertados graças aos raptos dos embaixadores. Inclusive foram feitos documentários sobre as torturas sofridas por esses prisioneiros.

No Chile, entre 1970 e 1971, foi editado um livro, produzido por exilados, tratando das violências e torturas no Brasil. Havia um capítulo sobre a violência ocasionada pelo milagre econômico, como a concentração da renda e a mortalidade infantil. Ele foi escrito por José Serra, militante da AP e economista da Cepal. Estes materiais estimularam a publicação do Livro Negro da Ditadura Militar. Como foi dito, a diferença estava no fato dele ser feito para ser divulgado dentro do país. A censura não permitia divulgar essas histórias no próprio país.

Buscava-se uma “mobilização emocional”, por isso a narrativa exigia detalhismo e veracidade. Segundo Pereira, havia até um debate sobre a possibilidade de que o livro provocasse o pânico sobre aqueles que resistiam ao explicitar a crueldade do regime. “Decidimos que não íamos fazer só o livro, mas uma campanha afirmando que a força do povo era maior que a repressão e ia derrotá-la. Existia um selo ilustrado com a figura de um operário, um camponês, um estudante e uma mulher sob os quais era colocado o slogan ‘a força do povo é maior que a repressão’”

Pereira terminou fazendo uma reflexão sobre o clamor por “Ditadura Nunca Mais”. Ele tem uma visão cautelosa sobre o assunto. “O que garante que não farão de novo?”, questiona ele. Ele lembrou que a conjuntura internacional hoje é diferente daquela na qual o presidente dos EUA, Jimmy Carter, introduziu a pauta dos direitos humanos nas relações internacionais. “Agora, a justiça estadunidense utiliza a tortura, as mortes sumárias por drones, sepultamento no mar e casas clandestinas para os acusados de terrorismo em países aliados”, afirmou.

Após o debate, as vendas do livro esgotaram os exemplares disponíveis. Juntos com Elifas Andreato, os autores enfrentaram a enorme fila daqueles que queriam autografar seus livros. Os escritores e alguns militantes, por sua vez, aproveitaram o momento para uma confraternização calorosa de colegas que não se viam há muito.

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