Escrito por Fabiano Puhlmann |
A vida é complexa, um misto de prazer e dor, mas ela também é limite, transforma-se a cada segundo. Quem escolheria, de boa vontade, ter uma deficiência física? Com certeza, nem eu ou você. Todos somos iguais neste desejo, um sentimento universal. A chegada da deficiência física marca e liberta. É unânime o relato de que, após o acidente, as pessoas experimentam a grande fragilidade da vida, mas também a certeza da providência divina, não importando o tipo ou a forma da religião professada. Há em muitos deficientes físicos uma predisposição espiritual de aceitar grandes desafios. Lidar com a vida sendo portador de deficiência é como passar por um portal, entrar em outra vida, como se realmente tivesse morrido e renascido. Muitas pessoas desejam ganhar um sorteio milionário, uma mudança total de suas vidas, mas nenhuma pensa em ser premiada com milhões de pequenas transformações no corpo, detalhes que, no conjunto, compõem a deficiência física. Deus é o dono da loteria da vida, portanto, temos que confiar em sua coerência. Se ganhamos dor, sofrimento, morte ou deficiência, este, com certeza, é o nosso bilhete premiado, a única moeda que, de fato, tem algum valor no sentido de mudar nossa vida. A história da humanidade é de luta constante contra as dificuldades. Assim, nunca aceite passivamente algo contrário à sua felicidade, seja sempre o guerreiro do amor, da paz e da tranqüilidade. Uma nova vida Por que me tornei deficiente? Qual o sentido desta experiência em minha vida? Estas são duas perguntas-chave que não podemos ter medo de formular e responder. Além disso, não podemos nos entregar ao desânimo, temos que lutar para encontrar o sentido pessoal de vida, sem esquecer que a essência nunca muda, mas se transforma a cada segundo. A deficiência atinge somente o seu corpo, porém, sua alma é livre, plena e saudável. Temos que parar de procurar culpados em algum momento do caminho. Certa vez, um paciente se referiu à sua vida antes da deficiência física de um jeito tão pesado e verdadeiro que, por muito tempo, fiquei chocado com a força que tinha seu humor negro. Era um jovem lutador de artes marciais. Aos 22 anos, fazia muito sucesso com as garotas de uma cidade do litoral, tinha um bom emprego e pais que lhe davam tudo. Um dia, comprou uma moto e, em sua primeira volta, caiu e quebrou o pescoço, ficando tetraplégico. De uma hora para outra, ele não conseguia mais sentir e mexer os braços e as pernas. Recebeu um nome em uma planilha: "tetraplégico". Para ele, ainda não era nada disso, apenas estava doente, logo iria se tratar e ficar curado. O tempo passou e nada mudou. Nosso companheiro, então, vendo a mudança em sua vida, passou a contar seus casos sempre iniciando com a mesma frase: "Quando eu era vivo...". A sensação de morte, de disjunção entre o presente e o passado, é expressa de modo agressivo e direto. É um lutador, um kickboxer dando murros e socos em si próprio. Falta de referências A deficiência física surge em nossas vidas sem pedir licença, sem aviso, pega-nos desprevenidos, surpresos. Podemos ficar paralisados por muito tempo tentando assimilar o choque, sem compreendermos os motivos de tantas mudanças. Aí nos perguntamos: Por quê? Existem tantas pessoas ruins neste mundo, por que eu fui escolhido para este castigo? É difícil o caminho do amadurecimento, é íngreme o caminho de retorno à vida. A pessoa fica deficiente e sem referências, não se sente identificada com os demais que estão na mesma situação. "Eles parecem uma raça de aleijados sorridentes e idiotas", dizia uma paraplégica de 20 anos, tentando justificar a razão de não freqüentar as associações de luta. Mas é duro constatar que também não é mais possível se identificar com as demais pessoas "normais". É como se você acordasse um dia e constatasse que tinha mudado a cor da pele. De uma hora para outra, você passa a se sentir deslocado, uma espécie de extraterrestre, um homem elefante, um monstrinho repugnante. Como pode alguém se sentir preparado para o amor após a deficiência sem um referencial interno que lhe diga quem é, quem são seus iguais? Então, o que resta é a dor, o sofrimento por tudo que perdeu, a frustração de se sentir impotente para mudar as coisas, a culpa meio sem sentido, a amargura que teima em deixar aquele sentimento de autocompaixão em nosso íntimo. Enquanto não mudarmos essa rotina idiota de girar em torno de nossa lápide, tentando reviver nossos sonhos perdidos, não conseguiremos nos abrir para nada, muito menos para viver algum tipo de amor com alguém. Entretanto, apesar da dor eterna, somos sobreviventes, acordamos do susto algum dia. O sol passa a ter novamente o dom de aquecer nossa alma e a lua, deixando de ser de fel, passa a nos atrair de novo para o sonho, começamos a acreditar que é possível sermos felizes mesmo que não possamos desvendar o dilema pelo resto de nossas vidas. Mantemos as cicatrizes, as seqüelas e as limitações, mas a alma se sente mais leve, mais feliz, um corpo velho-novo, um olhar antigo-renovado, uma alma que transcendeu, uma identidade completa, um rio que agora consegue seguir seu curso. A sensação de assimilação da deficiência física em nossa vida é acompanhada pela descoberta de uma força desconhecida em nós mesmos e isto irradia pelos poros, é facilmente percebido no olhar, todo o corpo fica pleno de vitalidade. Aquele estranho fascínio que todo deficiente físico bem resolvido tem, o charme, o viço e o carisma, tudo isso vêm de uma alma em sintonia com o corpo. A pessoa que se torna deficiente enfrenta também o problema de não poder parar para diluir suas perdas. Parar é o mesmo que paralisar, significa, em linguagem técnica, optar pela morte em vida. Começam a surgir úlceras que furam sua pele, seus pés e joelhos podem aumentar de volume e endurecer, seu intestino pode travar, pedras rasgam sua uretra e sua respiração se torna um inferno, existindo risco de pneumonia. Seus músculos flácidos e as contrações ficam insuportáveis, mas você não morre. Fica apenas em chagas, doente, deprimido, agonizante, porém, cheio de vida. Então, sem saída, vai aprendendo a caminhar devagar, sem desistir, chorar demasiadamente, parar de se mover, pois sofre a grande "pena de vida" e luta todo santo segundo contra a paralisia. E os representantes da cura (médicos e paramédicos) devem lembrar que cada pessoa luta pela vida que conhecia, não pela que tem hoje. Esta será, por muito tempo, sua motivação, pois ela buscará se recuperar durante meses ou anos, até o limite imposto pelas novas condições do corpo. Agir e ter esperança Portanto, a primeira coisa que o deficiente físico deve fazer é parar de pensar tanto e agir, parar de se lamentar e caminhar com o pensamento, os olhos, as mãos, as rodas, com aquilo que tiver disponível. As perdas são muitas, mas sempre sobrevive o essencial, que é lembrar que se consegue pensar, sentir e desejar, que existe uma saída. Mesmo sentindo dores e um desconforto constante, a esperança nunca deve morrer. Ainda que os médicos falem para desistir, que as pessoas parem de repetir para você ter fé, não desista de seus sonhos, não tente mudar sua natureza, continue nadando contra a maré, encontre sua praia e descanse. Pense sempre que o mais importante é caminhar, mover-se, não apenas andar. Tente controlar o medo de viver como um deficiente físico. O máximo que pode acontecer é as pessoas lhe chamarem de guerreiro, lutador. Aproxime-se intimamente daqueles que o excitam, sem medo de ouvir que você está confundindo as coisas. Pense e use tudo que aprendeu durante sua antiga vida e saiba que você jamais deixará de ser o mesmo. O corpo se transforma, a alma vivifica. Mas não adie demasiadamente a chuva de lágrimas, não tenha medo. Você irá chorar para sempre e todos precisamos de um pouco de alívio para continuar. Este artigo foi publicado na Revista Cristã de Espiritismo, edição 17 |
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