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domingo, 30 de novembro de 2025

A Noite em que Alcântara Acordou

Dizem que, em Alcântara, o mar nunca é apenas mar. É memória. E memória, quando se encosta em pedra antiga, costuma falar. No século XVIII, antes que as ruínas virassem cartão-postal, e  a cidade uma museu a céu aberto; as casas senhoriais erguiam-se como sobrancelhas arrogantes diante da baía. Feitas de pedra e cal, com paredes tão grossas que nenhum grito de senzala, acreditavam os senhores, seria capaz de atravessar.

Dona Constança do Vale, matriarca temida e respeitada, vivia num desses casarões. As janelas azuis sempre abertas para o vento traziam ares de grandeza, mas eram os passos de seus escravizados que sustentavam o peso da casa. Ela caminhava pelos corredores de pedra com um rosário na mão e uma certeza no peito: a ordem do mundo era aquela, e Deus, por algum motivo insondável, concordava.

Na parte dos fundos, onde a brisa do mar se tornava mais salgada, ficava a senzala. As paredes eram mais baixas, o teto mais abafado, mas ali havia olhos que brilhavam de um jeito que nem Dona Constança entendia. Eram os olhos de Kalena, mulher negra de fala mansa e memória afiada. Diziam que ela era filha de uma princesa africana, mas diziam isso baixinho, para que o feitor Rodrigo Fagundes não ouvisse e resolvesse testar se princesa também sangrava.

Kalena sabia ouvir o mar. Desde criança, percebia que as ondas de Alcântara carregavam qualquer coisa que não era deste mundo. A noite o vento parecia com grito e choro de coisas de outro mundo.  Os outros se encolhiam ao ouvir “as vozes da baía”, mas ela sorria, como quem reencontra parentes antigos. O mar, para Kalena, era o único lugar onde podia respirar liberdade, mesmo que apenas pela imaginação.

Na mesma senzala vivia Jobé, jovem forte, marcado de chicotes e silêncios. Crioulização do nome europeu "José", muito comum em senzala. Era ele quem, todas as noites, acendia uma lamparina para que os cativos pudessem conversar às escondidas:

 - Luz pequena também afasta escuridão grande.-  Dizia. Jobé.

Ele acreditava que, um dia, cruzaria o mar e voltaria para a terra de seus ancestrais. Kalena, sempre pragmática, respondia:

-  O mar leva… mas também devolve. É só saber o que pedir.

Jobé sorria, imaginando que, naquelas palavras, havia mais profecia que poesia.

Os portugueses da vila temiam três coisas: tempestades, traições e índios. E os índios, por sua vez, temiam apenas os portugueses. Jaciara, senhora da Lua, com sua beleza, mistério e feminilidade,  mulher do povo Tupinanbá, caminhava pela praia com o arco às costas, observando a cidade que ocupava a terra dos seus. Às vezes, quando a maré subia, ela dizia ao vento:

-  O mar não engole nada por acaso. Algum dia, ele pede de volta.

Numa noite sob Alcântara em que o céu parecia feito de carvão riscado, o mar começou a rugir.  Urrava como sentisse as dores do pelourinho. Não era tempestade comum; era o rugido de bicho antigo, velho como as primeiras canoas que tocaram aquelas águas. Jobé, Kalena e os outros escravizados acordaram assustados. Até o feitor, homem que se julgava sem medo, tremia como cachorro molhado.

Dona Constança saiu para o alpendre com seu rosário apertado entre os dedos:

-  Mistérios... sempre esses mistérios do mar.

O mar ignorou a reza. Cada onda vinha mais alta, mais feroz, quebrando nas pedras como se quisesse derrubar a cidade inteira. Pelas frestas das janelas, via-se a baía subindo como um peito revolto.

Jaciara apareceu correndo pela rua principal, gritando:

-  O mar está vindo cobrar!

Ninguém acreditou nela, até a água entrar pelos becos, arrastando tudo em seu caminho.

Então aconteceu algo que, até hoje, nem mesmo os pescadores mais velhos entendem direito: no auge da ameaça, quando a água já lambia as paredes da senzala do Coronel Baltazar Montenegro do Vale, o mar simplesmente parou. Recuou como um bicho cansado. E deixou, sobre as pedras, um silêncio tão profundo que até a lua pareceu prender a respiração.

Jobé foi o primeiro a perceber que algo havia mudado. A senzala, antes úmida e escura, estava inteira. Nenhuma parede quebrada. Nenhum corpo arrastado. Apenas um rastro de conchas, como se o mar tivesse deixado um recado.

Kalena ajoelhou-se, pegou uma pequena concha branca e murmurou:

-  Mar de Alcântara tem segredo. Por nós ele chora… por nós ele guarda.

Os escravizados passaram o resto da noite acordados. Pela primeira vez em muitos anos, não sentiram medo. Sentiram… esperança. Não sabiam explicar, mas perceberam que, naquela noite, o mar havia escolhido proteger quem sempre foi esquecido.

Já Dona Constança , olhando o horizonte, entendeu que havia algo mais forte que sua casa de pedra: a força de um povo inteiro que, mesmo acorrentado, ainda vibrava com o vento.

Na manhã seguinte, Jobé encontrou Jaciara na praia. A índia olhava o mar como quem cumpre promessa.

- O que foi isso?  - Ele perguntou.

Jacira sorriu, sem olhar para ele.

-  O mar não gosta de injustiça. Às vezes ele avisa devagar. Às vezes ele grita. – Respondeu Jaciara lança uma flecha  no mar.

Jobé respirou fundo e sentiu, pela primeira vez, que um mundo sem correntes era possível. O mar de Alcântara, com seus mistérios e suas ondas que guardam memórias ancestrais, lhe dizia isso.

E Kalena, segurando a concha branca, prometeu que nunca deixaria a história se perder.

Porque, naquela cidade de paredes de pedra, era o povo escravizado, e não os senhores,  quem carregava dentro do peito a verdadeira força de permanência.

E o mar… o mar  de Alcântara continua sussurrando.
Para quem tem coragem de ouvir.

 

José Casanova

Professor, Jornalista, Escritor e Cronista

Membro da Academia Bacabalense de Letras

Academia Mundial  de Letras da Humanidade

Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

CRÔNICA: A CIDADE ONDE ATÉ OS MILAGRES ERRAM A MIRA

 

Eu ouvi essa história numa roda de amigos, e Juro, quase caí da cadeira. Na pequena Santa Filomena das Bacabas, cidade tão sossegada que até o vento cochilava na sombra da igreja matriz, todo mundo conhecia as manias do padre Horácio. Homem bom, de alma leve, mas com um vício que Deus talvez tolerasse na categoria “pecadinhos humanos”: baralho. Não jogava por dinheiro, ou pelo menos era o que garantia com aquele sorriso santo demais para convencer alguém. Jogava porque dizia que “um padre também precisa exercitar o raciocínio”. E assim, entre Ave-Marias e trincas de ouros, o padre vivia.

Numa certa manhã de domingo, correndo contra o relógio para começar a missa das nove, a mais disputada, já que depois dela o povo ia direto para o mercado comprar galinha, o padre Horácio arrumou às pressas o sacrário. O piso claro da igreja ganhou umas manchas novas, cortesia dos sapatos enlameados do padre. Nem percebeu que, entre as hóstias, uma ficha branca do seu jogo de baralho se infiltrara como quem pede guarida no reino dos céus.

A missa correu bonita, até o momento da comunhão.

Foi quando apareceu ele: Milo Bregueço, o clássico bêbado oficial da cidade, cambaleando no corredor como quem procura o chão pra pedir desculpas. O padre, cheio de piedade e sem óculos naquele instante, colocou na boca do infeliz justamente a ficha branca.

Bregueço o mastigou.
Mastigou de novo.
Fez uma careta.
Tentou dissolver o milagre que não desmanchava.

Uma senhora devota, sentada ao lado dele, Dona Mariazinha, aquela que nunca perdia a chance de ensinar a fé alheia, sussurrou aflita:

- Irmão… não mastigue Nosso Pai!

Milo Bregueço virou o rosto devagar, olhos apertados, boca tentando triturar o que parecia uma telha de cerâmica.

- Nosso Pai? — Disse ele. — Duro desse jeito… só pode ser o nosso avô.

A mulher soltou um grito tão agudo que até o santo da parede se envergonhou e baixou as asas.

Mas os feitos de Bregueço não pararam aí.Santa Filomena das Bacabas tinha uma particularidade urbanística: a igreja matriz ficava colada ao estádio municipal, separados apenas por uma cerca que já perdera metade dos talos. Era comum, portanto, que um gol animado interrompesse uma ladainha, ou que um hino interrompesse um pênalti.

Num domingo seguinte, ainda com mais álcool do que sangue no corpo, Milo Bregueço entrou na igreja achando que estava indo assistir ao jogo. Sentou-se, fez pose de torcedor e esperou o apito inicial.

No púlpito, o padre Horácio pregava com entusiasmo:

-  Jesus passou na Galileia! Jesus passou no Getsêmani! Jesus passou em Nazaré! Jesus passou pela Judeia!

Bregueço, acreditando firmemente estar acompanhando uma narração esportiva, do narrador Carlos Borromeus, levantou o braço e berrou com toda a potência que a cachaça lhe dava:

-  Esse time não tem zagueiro, não!? Derruba esse cara, senão ele faz o gol!

A igreja inteira virou para ele. Risos inocentes...
O padre suspirou fundo.

E Milo Bregueço, finalmente entendendo o mal-entendido, fez o sinal da cruz de

um jeito tão atravessado que parecia estar espantando mosquitos.

No fundo, a gente é tudo meio Milo Bregueço: mastigando o que não desmancha e tentando entender sermão como se fosse jogo. Isso acontece quando caminhamos depressa demais, distraídos demais ou bêbados demais, de cachaça, de pressa, de orgulho.  Se tem lição nisso tudo, talvez seja só essa: quem vive distraído engole cada ficha que Deus duvida. O riso que fica é um lembrete doce, e meio trôpego, de que até as trapalhadas podem ensinar alguma coisa.

Dizem que foi verdade, e se não foi, deveria ter sido.

José Casanova

Professor, Jornalista, Escritor e Cronista membro da

Academia Bacabalense de Letras

Academia Mundial de Letras da Humanidade

Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

 

 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

A Caminhada do Axé

 

Na Terra da Bacaba, onde o Rio Mearim corre como se carregasse histórias que ninguém teve coragem de contar, a tarde se preparava para mais um capítulo que não caberia nos livros oficiais, desses que gostam de esquecer que o Brasil é feito de muitos Brasis. Era dia da Caminhada do Axé, e a Praça da Bíblia , ironia mais que perfeita , amanhecera com um cheiro de incenso, dendê e provocação histórica.

Por volta das quatro, quando o sol ainda insistia em dourar os telhados, começaram a chegar os primeiros. Mãe Aruanda, Mãe Ritinha de oxum com seu pano da costa amarelo e branco, ajeitava as pulseiras enquanto murmurava:

-  Esse povo pensa que a gente vem pra provocar… A gente vem é pra lembrar.

Ao lado dela, Zé Dandara, professor de história e militante da causa negra, sorria:

-  Lembrar e ensinar, Mãe. Porque esquecer é que eles gostam.

E logo chegaram os abatazeiros. Primeiro tímidos, como passos dados em casa estranha. Depois firmes, confiantes, rompendo o ar seco do início da noite. O povo foi formando roda, cruzando olhares, reconhecendo parentesco que não está no sangue, mas na luta. Pessoas negras, pardas e brancas , tudo misturado de um jeito que só o Axé sabe fazer sem pedir licença.

Curiosos se aproximavam. Alguns com admiração, outros com aquela cara de quem testemunha o fim do mundo só porque ouviu um atabaque. Teve até um senhor que, ao ver as vestes africanas, murmurou baixinho:

- Eu nunca vi roupa tão bonita… parece que a cidade ficou com mais cor.

A esposa dele, porém, apertou o braço e sussurrou:
- Credo, Manoel, isso aí é coisa de macumbeiro!

Joana da Casa de Cultura, artista local, ouviu, virou e respondeu com um sorriso que era faca e flor ao mesmo tempo:

- Minha senhora, macumbeiro não. Devoto do sagrado. Cada qual com seu caminho, né? Aqui ninguém tá tirando altar de ninguém. É só respeito que a gente quer.

A mulher desconversou e puxou o marido, que olhou pra trás como criança arrancada do brinquedo.

Quando os tambores começaram o primeiro a rufar, a atmosfera da Praça da Bíblia mudou como vento que vira de repente. Só quem estava lá sabe explicar , porque tambores não tocam, chamam. E foram chamando tudo: ancestralidade, memória, denúncia, força e aquele tipo de alegria que não dá pra vender em shopping.

Sentir um cheiro diferente na praça, algo que lembrava uma essência rara impossível de ser reproduzida em laboratório. As pessoas começaram a ficar encantadas com os encantados que provocavam choque anímicos nos médiuns. Era tudo no mínimo diferente.  

O cortejo se formou, puxado pelos Blocos Afros, que vinham com a energia de quem sabe que a cultura negra nunca foi só cultura: foi e é resistência. No microfone, Zé Dandara bradou:

- Hoje caminhamos por quem veio antes de nós e não pôde caminhar. Ora yêyê ô, minha gente! Que Oxum nos conduza!

A multidão respondeu com um coro que parecia levantar poeira colorida. A caminhada seguiu pelas ruas principais, arrastando gente, olhares e comentários atravessados.

Nas portas das lojas, o comércio parou. Tinha vendedor que sorria, tinha outros que baixavam as portas só de ver turbante. Racismo religioso? Estrutural? Dos dois tipos, com direito a pacotinho brinde. Vejo o racismo religioso como algo que nasce da incompreensão, do racismo gravado no subconsciente, embasados em doutrinas criadas por homens que interpretam textos bíblicos de acordos com sua visão deturpada da história

Lia, uma adolescente de 14 anos, caminhava pela primeira vez. Olhava tudo com olhos de festa e de descobrimento. Puxou a mãe, animada:

- Mãe, por que que tem gente olhando feio?
- Porque tem gente que tem medo do que não conhece, filha.
-  Mas é bonito demais pra ter medo…
- Pois é. Só quem conhece a beleza é quem não tem medo.

Os cânticos ganhavam volume. As palavras de ordem cortavam o ar como flecha:

-  Racismo é crime!

- Respeitem o sagrado africano!
- O Brasil é laico!
            -  A intolerância não vai nos calar!

E cada grito parecia acertar em cheio algum muro invisível da cidade.

Quando o cortejo dobrou a última rua e o Rio Mearim se abriu com suas águas pardas no antigo porto da cidade, Lia parou, boca aberta. À beira da água, Mamãe Oxum ,  a estátua dourada, altiva, suave ;esperava o cortejo como mãe que reconhece seus filhos, mesmo os que chegam atrasados.

Ali, diante de Mamãe Oxum, senti que a cidade respirava diferente. Era como se casa passo até ali fosse uma pequena vitória.

O vento soprou diferente. O tambor mudou de tom. As pessoas se aproximaram devagar, como quem pisa no coração da própria história.

Mãe Aruanda ergueu as mãos:

-  Ora yêyê ô, minha mãe! Dá caminho pra essa cidade que ainda tá aprendendo a amar todo mundo.

Joana, emocionada, limpou discretamente uma lágrima:

- Toda vez que eu vejo essa imagem eu lembro que a gente é rio, né? Mesmo quando tentam represar.

Zé Dandara completou:

- Rio, Nina… e corredeira. Porque onde a gente passa, ninguém fica como estava.

A multidão fez silêncio. Um silêncio que não era ausência , era presença. O tipo de silêncio que os tambores respeitam antes de voltar a tocar.

No fim, a Caminhada do Axé não foi só caminhada.
Foi lembrança.
Foi denúncia.
Foi abraço.
Foi o grito de um povo que se recusa a ser apagado.
Foi a educação que não cabe nas escolas que tentam controlar cor, fé e pensamento.

E naquela noite, na Terra da Bacaba, até o Rio Mearim pareceu andar alguns passos com eles.

Porque quando o Axé caminha, até a água se levanta para acompanhar.

Ora yêyê ô.

José Casanova
Professor, Jornalista e Escritor membro da
Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O país que esquece, o povo que lembra

Dona Nair costuma dizer que o Brasil tem memória curta, e que essa falha nunca foi inocente. Dizia isso ajeitando seus óculos tortos, na calçada da Rua do Cajueiro, enquanto olhava o movimento da cidade como quem procura respostas no vai-e-vem das pessoas. Ás vezes olhava o quintal preocupada com o nível do rio Mearim.

- Ô país curioso, esse nosso -  Resmungava ela, com aquele jeito de quem conhece a vida por dentro e por fora.  -  . Neste país, uns ganham caminhos abertos. Outros só conhecem o peso das correntes.

Chegara a essa conclusão depois de ver uma palestra de Rita de Cássia  ativista por uma sociedade antirracista. Depois daquela reunião na Associação de moradores sua vida nunca mais foi a mesma.

Numa tarde de novembro, quando o sol parecia bater continência ao Dia da Consciência Negra, sentei-me com ela e com o neto, Caíque, recém-chegado da escola, onde tinha ouvido, pela primeira vez, que seus bisavôs haviam sido “trazidos da África”.
Ele franzia a testa, confuso:

            -  Vó, como alguém pode chamar isso de viagem?

- viagem nada Caique. Aquilo era sequestro em alto mar

Dona Nair respirou fundo, como quem busca nas próprias memórias aquilo que a história oficial insistiu em não escrever.

-  Meu filho, teve gente que veio pra cá de navio porque quis. Vieram com mala, contrato de trabalho, promessa de terra e até dinheiro pra começar a vida. Isso o governo deu. Agora… -  E a voz dela ficava mais grave -  Teve outros milhões que chegaram nos mesmos barcos, mas trancados no porão, sem ar, sem nome, sem futuro. Esses eram seus bisavôs.

Ela olhou para o asfalto quente como quem enxerga além dele: via o passado.

-  Eram navios negreiros, Caíque. Eram tumbeiros, meu filho. Barcos onde gente viva era empilhada como carga. Tiravam-lhes a língua, a terra, o rumo. Aqui chegaram sem nome e sem direito até de existir. Gente que não recebeu nada, nem salário, nem fotografia pra dizer que existiu. Receberam só o ferro e a chibata.

O menino ficou em silêncio, mastigando a indignação com a ponta dos dentes.
Eu também.

Afinal, é estranho perceber que, num país onde 56,7% da população é preta, com 118 milhões de pessoas negras, a história ainda é contada como se elas tivessem surgido do nada, como sombras sem origem.

Depois da abolição malfeita, o Estado abriu as portas ,  mas não para quem tinha construído o país. Reservou terras e salários aos que vinham da Europa, enquanto empurrou os negros libertos para a beira do nada.

Dona Nair, porém, nunca engoliu essa versão torta.

-  Sempre tentaram nos diluir, Caíque. Primeiro pelo branqueamento forçado, depois pela pobreza empurrada goela abaixo, e agora pelas balas que insistem em achar corpos pretos.

Foi então que o vizinho Seu Adauto, velho militante do movimento negro e sobrevivente de muita luta, se aproximou devagar com seu inseparável rádio pendurado no ombro.Sentou-se ao nosso lado como quem entra numa roda ancestral.

-  Quando a história insiste em apagar, é a gente que acende a luz. — Disse Seu Adauto. -  Lembra de Abdias do Nascimento, de Lélia Gonzalez, de Carolina Maria de Jesus, de Zumbi e Dandara dos Palmares. A memória preta é teimosa, meu povo. Não cabe em livro rasurado.

Caíque, ouvindo os nomes como quem recebe herança, perguntou:

-  E o que a gente faz agora?

Seu Adauto sorriu, aquele sorriso que mistura cansaço e esperança.

- Agora, meu menino, a gente luta. Todo dia. Na escola, na rua, no voto, na escrita, no afeto. A gente faz barulho para que a história deixe de ser apagada. Ser preto no Brasil é ser sobrevivente, mas também é ser semente.

Dona Nair levantou-se devagar, segurando o queixo do neto com carinho.

-  O Brasil tentou nos esquecer, Caíque. Mas nós é que lembramos o Brasil quem ele é.

Naquele fim de tarde, o céu do Maranhão parecia um grande pano aberto, como se os ancestrais estivessem costurando nossa história de volta, senti que aquela família , e milhões de outras como ela , eram a verdadeira espinha dorsal do país.

Não a história que contaram, mas a história que resistiu.

Sou escritor negro pardo conectado com meus ancestrais, minha pena não tem pena de descrever a verdade. E neste dia da consciência negra espero que você tome ciência que a quantidade de melanina na sua pele, não te faz pessoa melhor ou pior; somos todos Brasileiros.

José Casanova
Professor, Jornalista, Escritor e Cronista
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil


domingo, 16 de novembro de 2025

ASCAL realiza Sessão Pública e diploma membros fundadores em cerimônia histórica em São Mateus do Maranhão


A Academia São-mateuense de Cultura, Artes e Letras (ASCAL) realizou, na noite deste sábado (15), uma Sessão Pública solene no Salão Paroquial da Igreja Matriz, marcando oficialmente o início de suas atividades institucionais. O evento, que celebrou a diplomação dos sócios fundadores e membros acadêmicos, reuniu importantes representantes do cenário cultural maranhense e contou com grande participação da comunidade local.

Entre as autoridades presentes, destacaram-se o presidente da FALMA – Federação das Academias de Letras do Maranhão –, o escritor César Brito que na ocasião também tomou pisse na ASCAL,  o presidente da Academia Bacabalense de Letras (ABL), José Casanova; e Inaldo Lisboa representante da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes, fortalecendo o diálogo entre as instituições literárias do estado.

Durante a cerimônia, os acadêmicos receberam seus diplomas em clima de emoção e reconhecimento, reafirmando o compromisso da ASCAL em valorizar a memória, a identidade e a produção intelectual de São Mateus. Cada cadeira da Academia homenageia uma personalidade marcante para a história do município, reforçando o vínculo entre tradição e renovação cultural.

Em seu discurso, o presidente da ASCAL destacou que a criação da Academia nasce como resposta ao crescente movimento cultural observado nos últimos anos na cidade. Segundo ele, a entidade tem como missão fortalecer os espaços de criação artística, pesquisa e reflexão literária, além de estimular a participação da juventude em iniciativas culturais.

A solenidade foi encerrada com agradecimentos e com o anúncio de uma agenda inicial de projetos que serão desenvolvidos pela instituição, incluindo saraus, ciclos de palestras, lançamentos literários e ações formativas voltadas para estudantes e novos escritores.

Com a Sessão Pública deste sábado, a ASCAL inaugura oficialmente sua atuação e se consolida como um novo polo de promoção da cultura, da literatura e das artes em São Mateus do Maranhão, ampliando o mapa das academias literárias do estado e contribuindo para o fortalecimento da identidade cultural maranhense.