Dizem que, em Alcântara, o mar
nunca é apenas mar. É memória. E memória, quando se encosta em pedra antiga,
costuma falar. No século XVIII, antes que as ruínas virassem cartão-postal,
e a cidade uma museu a céu aberto; as
casas senhoriais erguiam-se como sobrancelhas arrogantes diante da baía. Feitas
de pedra e cal, com paredes tão grossas que nenhum grito de senzala,
acreditavam os senhores, seria capaz de atravessar.
Dona Constança do Vale, matriarca
temida e respeitada, vivia num desses casarões. As janelas azuis sempre abertas
para o vento traziam ares de grandeza, mas eram os passos de seus escravizados
que sustentavam o peso da casa. Ela caminhava pelos corredores de pedra com um
rosário na mão e uma certeza no peito: a ordem do mundo era aquela, e Deus, por
algum motivo insondável, concordava.
Na parte dos fundos, onde a brisa
do mar se tornava mais salgada, ficava a senzala. As paredes eram mais baixas,
o teto mais abafado, mas ali havia olhos que brilhavam de um jeito que nem Dona
Constança entendia. Eram os olhos de Kalena,
mulher negra de fala mansa e memória afiada. Diziam que ela era filha de uma
princesa africana, mas diziam isso baixinho, para que o feitor Rodrigo Fagundes
não ouvisse e resolvesse testar se princesa também sangrava.
Kalena sabia ouvir o mar. Desde
criança, percebia que as ondas de Alcântara carregavam qualquer coisa que não
era deste mundo. A noite o vento parecia com grito e choro de coisas de outro
mundo. Os outros se encolhiam ao ouvir
“as vozes da baía”, mas ela sorria, como quem reencontra parentes antigos. O
mar, para Kalena, era o único lugar onde podia respirar liberdade, mesmo que
apenas pela imaginação.
Na mesma senzala vivia Jobé, jovem forte, marcado de chicotes
e silêncios. Crioulização
do nome europeu "José", muito comum em senzala. Era ele quem, todas as noites,
acendia uma lamparina para que os cativos pudessem conversar às escondidas:
- Luz pequena também afasta escuridão grande.- Dizia. Jobé.
Ele acreditava que, um dia,
cruzaria o mar e voltaria para a terra de seus ancestrais. Kalena, sempre
pragmática, respondia:
- O mar leva… mas também devolve. É só saber o
que pedir.
Jobé sorria, imaginando que,
naquelas palavras, havia mais profecia que poesia.
Os portugueses da vila temiam
três coisas: tempestades, traições e índios. E os índios, por sua vez, temiam
apenas os portugueses. Jaciara, senhora da Lua, com sua
beleza, mistério e feminilidade, mulher
do povo Tupinanbá, caminhava pela praia com o arco às costas, observando a
cidade que ocupava a terra dos seus. Às vezes, quando a maré subia, ela dizia
ao vento:
- O mar não engole nada por acaso. Algum dia,
ele pede de volta.
Numa noite sob Alcântara em que o
céu parecia feito de carvão riscado, o mar começou a rugir. Urrava como sentisse as dores do pelourinho. Não
era tempestade comum; era o rugido de bicho antigo, velho como as primeiras
canoas que tocaram aquelas águas. Jobé, Kalena e os outros escravizados
acordaram assustados. Até o feitor, homem que se julgava sem medo, tremia como
cachorro molhado.
Dona Constança saiu para o
alpendre com seu rosário apertado entre os dedos:
- Mistérios... sempre esses mistérios do mar.
O mar ignorou a reza. Cada onda
vinha mais alta, mais feroz, quebrando nas pedras como se quisesse derrubar a
cidade inteira. Pelas frestas das janelas, via-se a baía subindo como um peito
revolto.
Jaciara apareceu correndo pela
rua principal, gritando:
- O mar está vindo cobrar!
Ninguém acreditou nela, até a
água entrar pelos becos, arrastando tudo em seu caminho.
Então aconteceu algo que, até
hoje, nem mesmo os pescadores mais velhos entendem direito: no auge da ameaça,
quando a água já lambia as paredes da senzala do Coronel Baltazar Montenegro do
Vale, o mar simplesmente parou. Recuou como um bicho cansado. E deixou, sobre
as pedras, um silêncio tão profundo que até a lua pareceu prender a respiração.
Jobé foi o primeiro a perceber que
algo havia mudado. A senzala, antes úmida e escura, estava inteira. Nenhuma
parede quebrada. Nenhum corpo arrastado. Apenas um rastro de conchas, como se o
mar tivesse deixado um recado.
Kalena ajoelhou-se, pegou uma
pequena concha branca e murmurou:
- Mar de Alcântara tem segredo. Por nós ele
chora… por nós ele guarda.
Os escravizados passaram o resto
da noite acordados. Pela primeira vez em muitos anos, não sentiram medo.
Sentiram… esperança. Não sabiam explicar, mas perceberam que, naquela noite, o
mar havia escolhido proteger quem sempre foi esquecido.
Já Dona Constança , olhando o
horizonte, entendeu que havia algo mais forte que sua casa de pedra: a força de um povo inteiro que, mesmo
acorrentado, ainda vibrava com o vento.
Na manhã seguinte, Jobé encontrou
Jaciara na praia. A índia olhava o mar como quem cumpre promessa.
- O que foi isso? - Ele perguntou.
Jacira sorriu, sem olhar para
ele.
- O mar não gosta de injustiça. Às vezes ele
avisa devagar. Às vezes ele grita. – Respondeu Jaciara lança uma flecha no mar.
Jobé respirou fundo e sentiu, pela
primeira vez, que um mundo sem correntes era possível. O mar de Alcântara, com
seus mistérios e suas ondas que guardam memórias ancestrais, lhe dizia isso.
E Kalena, segurando a concha
branca, prometeu que nunca deixaria a história se perder.
Porque, naquela cidade de paredes de pedra, era o
povo escravizado, e não os senhores, quem carregava dentro do peito a verdadeira
força de permanência.
E o mar… o mar de Alcântara continua sussurrando.
Para quem tem coragem de ouvir.
José Casanova
Professor, Jornalista, Escritor e Cronista
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras
Infantojuvenil















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