quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O país que esquece, o povo que lembra

Dona Nair costuma dizer que o Brasil tem memória curta, e que essa falha nunca foi inocente. Dizia isso ajeitando seus óculos tortos, na calçada da Rua do Cajueiro, enquanto olhava o movimento da cidade como quem procura respostas no vai-e-vem das pessoas. Ás vezes olhava o quintal preocupada com o nível do rio Mearim.

- Ô país curioso, esse nosso -  Resmungava ela, com aquele jeito de quem conhece a vida por dentro e por fora.  -  . Neste país, uns ganham caminhos abertos. Outros só conhecem o peso das correntes.

Chegara a essa conclusão depois de ver uma palestra de Rita de Cássia  ativista por uma sociedade antirracista. Depois daquela reunião na Associação de moradores sua vida nunca mais foi a mesma.

Numa tarde de novembro, quando o sol parecia bater continência ao Dia da Consciência Negra, sentei-me com ela e com o neto, Caíque, recém-chegado da escola, onde tinha ouvido, pela primeira vez, que seus bisavôs haviam sido “trazidos da África”.
Ele franzia a testa, confuso:

            -  Vó, como alguém pode chamar isso de viagem?

- viagem nada Caique. Aquilo era sequestro em alto mar

Dona Nair respirou fundo, como quem busca nas próprias memórias aquilo que a história oficial insistiu em não escrever.

-  Meu filho, teve gente que veio pra cá de navio porque quis. Vieram com mala, contrato de trabalho, promessa de terra e até dinheiro pra começar a vida. Isso o governo deu. Agora… -  E a voz dela ficava mais grave -  Teve outros milhões que chegaram nos mesmos barcos, mas trancados no porão, sem ar, sem nome, sem futuro. Esses eram seus bisavôs.

Ela olhou para o asfalto quente como quem enxerga além dele: via o passado.

-  Eram navios negreiros, Caíque. Eram tumbeiros, meu filho. Barcos onde gente viva era empilhada como carga. Tiravam-lhes a língua, a terra, o rumo. Aqui chegaram sem nome e sem direito até de existir. Gente que não recebeu nada, nem salário, nem fotografia pra dizer que existiu. Receberam só o ferro e a chibata.

O menino ficou em silêncio, mastigando a indignação com a ponta dos dentes.
Eu também.

Afinal, é estranho perceber que, num país onde 56,7% da população é preta, com 118 milhões de pessoas negras, a história ainda é contada como se elas tivessem surgido do nada, como sombras sem origem.

Depois da abolição malfeita, o Estado abriu as portas ,  mas não para quem tinha construído o país. Reservou terras e salários aos que vinham da Europa, enquanto empurrou os negros libertos para a beira do nada.

Dona Nair, porém, nunca engoliu essa versão torta.

-  Sempre tentaram nos diluir, Caíque. Primeiro pelo branqueamento forçado, depois pela pobreza empurrada goela abaixo, e agora pelas balas que insistem em achar corpos pretos.

Foi então que o vizinho Seu Adauto, velho militante do movimento negro e sobrevivente de muita luta, se aproximou devagar com seu inseparável rádio pendurado no ombro.Sentou-se ao nosso lado como quem entra numa roda ancestral.

-  Quando a história insiste em apagar, é a gente que acende a luz. — Disse Seu Adauto. -  Lembra de Abdias do Nascimento, de Lélia Gonzalez, de Carolina Maria de Jesus, de Zumbi e Dandara dos Palmares. A memória preta é teimosa, meu povo. Não cabe em livro rasurado.

Caíque, ouvindo os nomes como quem recebe herança, perguntou:

-  E o que a gente faz agora?

Seu Adauto sorriu, aquele sorriso que mistura cansaço e esperança.

- Agora, meu menino, a gente luta. Todo dia. Na escola, na rua, no voto, na escrita, no afeto. A gente faz barulho para que a história deixe de ser apagada. Ser preto no Brasil é ser sobrevivente, mas também é ser semente.

Dona Nair levantou-se devagar, segurando o queixo do neto com carinho.

-  O Brasil tentou nos esquecer, Caíque. Mas nós é que lembramos o Brasil quem ele é.

Naquele fim de tarde, o céu do Maranhão parecia um grande pano aberto, como se os ancestrais estivessem costurando nossa história de volta, senti que aquela família , e milhões de outras como ela , eram a verdadeira espinha dorsal do país.

Não a história que contaram, mas a história que resistiu.

Sou escritor negro pardo conectado com meus ancestrais, minha pena não tem pena de descrever a verdade. E neste dia da consciência negra espero que você tome ciência que a quantidade de melanina na sua pele, não te faz pessoa melhor ou pior; somos todos Brasileiros.

José Casanova
Professor, Jornalista, Escritor e Cronista
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil


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