Dona Nair costuma dizer que o
Brasil tem memória curta, e que essa falha nunca foi inocente. Dizia isso
ajeitando seus óculos tortos, na calçada da Rua do Cajueiro, enquanto olhava o
movimento da cidade como quem procura respostas no vai-e-vem das pessoas. Ás
vezes olhava o quintal preocupada com o nível do rio Mearim.
- Ô país curioso, esse nosso - Resmungava ela, com aquele jeito de quem
conhece a vida por dentro e por fora. - . Neste país, uns ganham caminhos abertos.
Outros só conhecem o peso das correntes.
Chegara a essa conclusão depois de
ver uma palestra de Rita de Cássia
ativista por uma sociedade antirracista. Depois daquela reunião na
Associação de moradores sua vida nunca mais foi a mesma.
Numa tarde de novembro, quando o
sol parecia bater continência ao Dia da Consciência Negra, sentei-me com ela e
com o neto, Caíque, recém-chegado da escola, onde tinha ouvido, pela primeira
vez, que seus bisavôs haviam sido “trazidos da África”.
Ele franzia a testa, confuso:
- Vó, como alguém pode chamar isso de viagem?
- viagem nada Caique. Aquilo era sequestro em alto
mar
Dona Nair respirou fundo, como
quem busca nas próprias memórias aquilo que a história oficial insistiu em não
escrever.
- Meu filho, teve gente que veio pra cá de navio
porque quis. Vieram com mala, contrato de trabalho, promessa de terra e até
dinheiro pra começar a vida. Isso o governo deu. Agora… - E a voz dela ficava mais grave - Teve outros milhões que chegaram nos mesmos
barcos, mas trancados no porão, sem ar, sem nome, sem futuro. Esses eram seus
bisavôs.
Ela olhou para o asfalto quente
como quem enxerga além dele: via o passado.
- Eram navios negreiros, Caíque. Eram tumbeiros,
meu filho. Barcos onde gente viva era empilhada como carga. Tiravam-lhes a língua, a terra, o
rumo. Aqui chegaram sem nome e sem direito até de existir. Gente que não recebeu nada, nem
salário, nem fotografia pra dizer que existiu. Receberam só o ferro e a
chibata.
O menino ficou em silêncio,
mastigando a indignação com a ponta dos dentes.
Eu também.
Afinal, é estranho perceber que,
num país onde 56,7% da população é preta, com 118 milhões de pessoas
negras, a história ainda é contada como se elas tivessem surgido do nada,
como sombras sem origem.
Depois da abolição malfeita, o Estado
abriu as portas , mas não para quem
tinha construído o país. Reservou terras e salários aos que vinham da Europa,
enquanto empurrou os negros libertos para a beira do nada.
Dona Nair, porém, nunca engoliu
essa versão torta.
- Sempre tentaram nos diluir, Caíque. Primeiro
pelo branqueamento forçado, depois pela pobreza empurrada goela abaixo, e agora
pelas balas que insistem em achar corpos pretos.
Foi então que o vizinho Seu
Adauto, velho militante do movimento negro e sobrevivente de muita luta, se
aproximou devagar com seu inseparável rádio pendurado no ombro.Sentou-se ao
nosso lado como quem entra numa roda ancestral.
- Quando a história insiste em apagar, é a
gente que acende a luz. — Disse Seu Adauto. - Lembra
de Abdias do Nascimento, de Lélia Gonzalez, de Carolina Maria de Jesus, de
Zumbi e Dandara dos Palmares. A memória preta é teimosa, meu povo. Não cabe em
livro rasurado.
Caíque, ouvindo os nomes como
quem recebe herança, perguntou:
- E o que a gente faz agora?
Seu Adauto sorriu, aquele sorriso
que mistura cansaço e esperança.
- Agora, meu menino, a gente
luta. Todo dia. Na escola, na rua, no voto, na escrita, no afeto. A gente faz
barulho para que a história deixe de ser apagada. Ser preto no Brasil é ser
sobrevivente, mas também é ser semente.
Dona Nair levantou-se devagar,
segurando o queixo do neto com carinho.
- O Brasil tentou nos esquecer, Caíque. Mas nós
é que lembramos o Brasil quem ele é.
Naquele fim de
tarde, o céu do Maranhão parecia um grande pano aberto, como se os ancestrais
estivessem costurando nossa história de volta, senti que aquela família , e milhões de outras
como ela , eram a verdadeira espinha dorsal do país.
Não a história que contaram, mas
a história que resistiu.
Sou escritor negro pardo conectado com meus ancestrais, minha pena não tem pena de descrever a verdade. E neste dia da consciência negra espero que você tome ciência que a quantidade de melanina na sua pele, não te faz pessoa melhor ou pior; somos todos Brasileiros.
Professor, Jornalista, Escritor e Cronista
Membro da Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil







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