Eu ouvi essa história numa roda de
amigos, e Juro, quase caí da cadeira. Na pequena Santa Filomena das Bacabas, cidade tão sossegada que até o vento
cochilava na sombra da igreja matriz, todo mundo conhecia as manias do padre
Horácio. Homem bom, de alma leve, mas com um vício que Deus talvez tolerasse na
categoria “pecadinhos humanos”: baralho. Não jogava por dinheiro, ou pelo menos
era o que garantia com aquele sorriso santo demais para convencer alguém.
Jogava porque dizia que “um padre também precisa exercitar o raciocínio”. E
assim, entre Ave-Marias e trincas de ouros, o padre vivia.
Numa certa manhã de domingo,
correndo contra o relógio para começar a missa das nove, a mais disputada, já
que depois dela o povo ia direto para o mercado comprar galinha, o padre
Horácio arrumou às pressas o sacrário. O piso claro da igreja ganhou umas manchas
novas, cortesia dos sapatos enlameados do padre. Nem percebeu que, entre as hóstias, uma ficha branca do seu jogo de baralho se
infiltrara como quem pede guarida no reino dos céus.
A missa correu bonita, até o
momento da comunhão.
Foi quando apareceu ele: Milo Bregueço, o clássico bêbado
oficial da cidade, cambaleando no corredor como quem procura o chão pra pedir
desculpas. O padre, cheio de piedade e sem óculos naquele instante, colocou na
boca do infeliz justamente a ficha branca.
Bregueço o mastigou.
Mastigou de novo.
Fez uma careta.
Tentou dissolver o milagre que não desmanchava.
Uma senhora devota, sentada ao
lado dele, Dona Mariazinha, aquela que nunca perdia a chance de ensinar a fé alheia,
sussurrou aflita:
- Irmão… não mastigue Nosso Pai!
Milo Bregueço virou o rosto
devagar, olhos apertados, boca tentando triturar o que parecia uma telha de
cerâmica.
- Nosso Pai? — Disse ele. — Duro desse jeito… só pode ser o nosso avô.
A mulher soltou um grito tão
agudo que até o santo da parede se envergonhou e baixou as asas.
Mas os feitos de Bregueço não
pararam aí.Santa Filomena das Bacabas
tinha uma particularidade urbanística: a igreja matriz ficava colada ao estádio
municipal, separados apenas por uma cerca que já perdera metade dos talos. Era
comum, portanto, que um gol animado interrompesse uma ladainha, ou que um hino
interrompesse um pênalti.
Num domingo seguinte, ainda com
mais álcool do que sangue no corpo, Milo Bregueço entrou na igreja achando que
estava indo assistir ao jogo. Sentou-se, fez pose de torcedor e esperou o apito
inicial.
No púlpito, o padre Horácio
pregava com entusiasmo:
- Jesus
passou na Galileia! Jesus passou no Getsêmani! Jesus passou em Nazaré! Jesus
passou pela Judeia!
Bregueço, acreditando firmemente
estar acompanhando uma narração esportiva, do narrador Carlos Borromeus,
levantou o braço e berrou com toda a potência que a cachaça lhe dava:
- Esse
time não tem zagueiro, não!? Derruba esse cara, senão ele faz o gol!
A igreja inteira virou para ele. Risos inocentes...
O padre suspirou fundo.
E Milo Bregueço, finalmente
entendendo o mal-entendido, fez o sinal da cruz de
um jeito
tão atravessado que parecia estar espantando mosquitos.
No fundo, a gente
é tudo meio Milo Bregueço: mastigando o que não desmancha e tentando entender
sermão como se fosse jogo. Isso acontece quando caminhamos depressa demais, distraídos demais ou
bêbados demais, de cachaça, de pressa, de orgulho. Se tem lição nisso tudo, talvez seja só
essa: quem vive distraído engole cada ficha que Deus duvida. O riso que fica é um lembrete
doce, e meio trôpego, de que até as trapalhadas podem ensinar alguma coisa.
Dizem que foi verdade, e se não foi,
deveria ter sido.
José Casanova
Professor, Jornalista, Escritor e Cronista membro da
Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil







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