terça-feira, 25 de novembro de 2025

CRÔNICA: A CIDADE ONDE ATÉ OS MILAGRES ERRAM A MIRA

 

Eu ouvi essa história numa roda de amigos, e Juro, quase caí da cadeira. Na pequena Santa Filomena das Bacabas, cidade tão sossegada que até o vento cochilava na sombra da igreja matriz, todo mundo conhecia as manias do padre Horácio. Homem bom, de alma leve, mas com um vício que Deus talvez tolerasse na categoria “pecadinhos humanos”: baralho. Não jogava por dinheiro, ou pelo menos era o que garantia com aquele sorriso santo demais para convencer alguém. Jogava porque dizia que “um padre também precisa exercitar o raciocínio”. E assim, entre Ave-Marias e trincas de ouros, o padre vivia.

Numa certa manhã de domingo, correndo contra o relógio para começar a missa das nove, a mais disputada, já que depois dela o povo ia direto para o mercado comprar galinha, o padre Horácio arrumou às pressas o sacrário. O piso claro da igreja ganhou umas manchas novas, cortesia dos sapatos enlameados do padre. Nem percebeu que, entre as hóstias, uma ficha branca do seu jogo de baralho se infiltrara como quem pede guarida no reino dos céus.

A missa correu bonita, até o momento da comunhão.

Foi quando apareceu ele: Milo Bregueço, o clássico bêbado oficial da cidade, cambaleando no corredor como quem procura o chão pra pedir desculpas. O padre, cheio de piedade e sem óculos naquele instante, colocou na boca do infeliz justamente a ficha branca.

Bregueço o mastigou.
Mastigou de novo.
Fez uma careta.
Tentou dissolver o milagre que não desmanchava.

Uma senhora devota, sentada ao lado dele, Dona Mariazinha, aquela que nunca perdia a chance de ensinar a fé alheia, sussurrou aflita:

- Irmão… não mastigue Nosso Pai!

Milo Bregueço virou o rosto devagar, olhos apertados, boca tentando triturar o que parecia uma telha de cerâmica.

- Nosso Pai? — Disse ele. — Duro desse jeito… só pode ser o nosso avô.

A mulher soltou um grito tão agudo que até o santo da parede se envergonhou e baixou as asas.

Mas os feitos de Bregueço não pararam aí.Santa Filomena das Bacabas tinha uma particularidade urbanística: a igreja matriz ficava colada ao estádio municipal, separados apenas por uma cerca que já perdera metade dos talos. Era comum, portanto, que um gol animado interrompesse uma ladainha, ou que um hino interrompesse um pênalti.

Num domingo seguinte, ainda com mais álcool do que sangue no corpo, Milo Bregueço entrou na igreja achando que estava indo assistir ao jogo. Sentou-se, fez pose de torcedor e esperou o apito inicial.

No púlpito, o padre Horácio pregava com entusiasmo:

-  Jesus passou na Galileia! Jesus passou no Getsêmani! Jesus passou em Nazaré! Jesus passou pela Judeia!

Bregueço, acreditando firmemente estar acompanhando uma narração esportiva, do narrador Carlos Borromeus, levantou o braço e berrou com toda a potência que a cachaça lhe dava:

-  Esse time não tem zagueiro, não!? Derruba esse cara, senão ele faz o gol!

A igreja inteira virou para ele. Risos inocentes...
O padre suspirou fundo.

E Milo Bregueço, finalmente entendendo o mal-entendido, fez o sinal da cruz de

um jeito tão atravessado que parecia estar espantando mosquitos.

No fundo, a gente é tudo meio Milo Bregueço: mastigando o que não desmancha e tentando entender sermão como se fosse jogo. Isso acontece quando caminhamos depressa demais, distraídos demais ou bêbados demais, de cachaça, de pressa, de orgulho.  Se tem lição nisso tudo, talvez seja só essa: quem vive distraído engole cada ficha que Deus duvida. O riso que fica é um lembrete doce, e meio trôpego, de que até as trapalhadas podem ensinar alguma coisa.

Dizem que foi verdade, e se não foi, deveria ter sido.

José Casanova

Professor, Jornalista, Escritor e Cronista membro da

Academia Bacabalense de Letras

Academia Mundial de Letras da Humanidade

Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

 

 

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