Na Terra da Bacaba, onde o Rio
Mearim corre como se carregasse histórias que ninguém teve coragem de
contar, a tarde
se preparava para mais um capítulo que não caberia nos livros oficiais, desses
que gostam de esquecer que o Brasil é feito de muitos Brasis. Era dia da Caminhada
do Axé, e a Praça da Bíblia , ironia mais que perfeita , amanhecera com um
cheiro de incenso, dendê e provocação histórica.
Por volta das quatro, quando o
sol ainda insistia em dourar os telhados, começaram a chegar os primeiros. Mãe
Aruanda, Mãe Ritinha de oxum com seu pano da costa amarelo e branco,
ajeitava as pulseiras enquanto murmurava:
- Esse povo pensa que a gente vem pra provocar…
A gente vem é pra lembrar.
Ao lado dela, Zé Dandara,
professor de história e militante da causa negra, sorria:
- Lembrar e ensinar, Mãe. Porque esquecer é que
eles gostam.
E logo chegaram os abatazeiros.
Primeiro tímidos, como passos dados em casa estranha. Depois firmes,
confiantes, rompendo o ar seco do início da noite. O povo foi formando roda,
cruzando olhares, reconhecendo parentesco que não está no sangue, mas na luta.
Pessoas negras, pardas e brancas , tudo misturado de um jeito que só o Axé sabe
fazer sem pedir licença.
Curiosos se aproximavam. Alguns
com admiração, outros com aquela cara de quem testemunha o fim do mundo só
porque ouviu um atabaque. Teve até um senhor que, ao ver as vestes africanas,
murmurou baixinho:
- Eu nunca vi roupa tão
bonita… parece que a cidade ficou com mais cor.
A esposa dele, porém, apertou o
braço e sussurrou:
- Credo, Manoel, isso aí é coisa de macumbeiro!
Joana da Casa de Cultura, artista local, ouviu, virou e
respondeu com um sorriso que era faca e flor ao mesmo tempo:
- Minha senhora, macumbeiro não.
Devoto do sagrado. Cada qual com seu caminho, né? Aqui ninguém tá tirando altar
de ninguém. É só respeito que a gente quer.
A mulher desconversou e puxou o
marido, que olhou pra trás como criança arrancada do brinquedo.
Quando os tambores começaram o
primeiro a rufar, a atmosfera da Praça da Bíblia mudou como vento que
vira de repente. Só quem estava lá sabe explicar , porque tambores não tocam,
chamam. E foram chamando tudo: ancestralidade, memória, denúncia, força e
aquele tipo de alegria que não dá pra vender em shopping.
Sentir um cheiro diferente na
praça, algo que lembrava uma essência rara impossível de ser reproduzida em
laboratório. As pessoas começaram a ficar encantadas com os encantados que
provocavam choque anímicos nos médiuns. Era tudo no mínimo diferente.
O cortejo se formou, puxado pelos
Blocos Afros, que vinham com a energia de quem sabe que a cultura negra
nunca foi só cultura: foi e é resistência. No microfone, Zé Dandara bradou:
- Hoje caminhamos por quem veio antes de nós e
não pôde caminhar. Ora yêyê ô, minha gente! Que Oxum nos conduza!
A multidão respondeu com um coro
que parecia levantar poeira colorida. A caminhada seguiu pelas ruas principais,
arrastando gente, olhares e comentários atravessados.
Nas portas das lojas, o comércio
parou. Tinha vendedor que sorria, tinha outros que baixavam as portas só de ver
turbante. Racismo religioso? Estrutural? Dos dois tipos, com direito a
pacotinho brinde. Vejo o racismo religioso como algo que nasce da incompreensão,
do racismo gravado no subconsciente, embasados em doutrinas criadas por homens
que interpretam textos bíblicos de acordos com sua visão deturpada da história
Lia, uma adolescente de 14 anos,
caminhava pela primeira vez. Olhava tudo com olhos de festa e de descobrimento.
Puxou a mãe, animada:
- Mãe, por que que tem gente olhando feio?
- Porque tem gente que tem medo do que não conhece, filha.
- Mas é bonito demais pra ter medo…
- Pois é. Só quem conhece a beleza é quem não tem medo.
Os cânticos ganhavam volume. As palavras de ordem cortavam o ar como flecha:
- Racismo é crime!
E cada grito parecia acertar em
cheio algum muro invisível da cidade.
Quando o cortejo dobrou a última
rua e o Rio Mearim se abriu com suas águas pardas no antigo porto da cidade,
Lia parou, boca aberta. À beira da água, Mamãe Oxum , a estátua dourada, altiva, suave ;esperava o
cortejo como mãe que reconhece seus filhos, mesmo os que chegam atrasados.
Ali, diante de Mamãe Oxum, senti
que a cidade respirava diferente. Era como se casa passo até ali fosse uma
pequena vitória.
O vento soprou diferente. O tambor mudou de tom. As
pessoas se aproximaram devagar, como quem pisa no coração da própria história.
Mãe Aruanda ergueu as mãos:
- Ora yêyê ô, minha mãe! Dá caminho pra essa
cidade que ainda tá aprendendo a amar todo mundo.
Joana, emocionada, limpou
discretamente uma lágrima:
- Toda vez que eu vejo essa
imagem eu lembro que a gente é rio, né? Mesmo quando tentam represar.
Zé Dandara completou:
- Rio, Nina… e corredeira. Porque
onde a gente passa, ninguém fica como estava.
A multidão fez silêncio. Um
silêncio que não era ausência , era presença. O tipo de silêncio que os
tambores respeitam antes de voltar a tocar.
No fim, a Caminhada do Axé não foi só caminhada.
Foi lembrança.
Foi denúncia.
Foi abraço.
Foi o grito de um povo que se recusa a ser apagado.
Foi a educação que não cabe nas escolas que tentam controlar cor, fé e
pensamento.
E naquela noite, na Terra da
Bacaba, até o Rio Mearim pareceu andar alguns passos com eles.
Porque quando o Axé caminha, até
a água se levanta para acompanhar.
Ora yêyê ô.
Professor, Jornalista e Escritor membro da
Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil






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