sexta-feira, 21 de novembro de 2025

A Caminhada do Axé

 

Na Terra da Bacaba, onde o Rio Mearim corre como se carregasse histórias que ninguém teve coragem de contar, a tarde se preparava para mais um capítulo que não caberia nos livros oficiais, desses que gostam de esquecer que o Brasil é feito de muitos Brasis. Era dia da Caminhada do Axé, e a Praça da Bíblia , ironia mais que perfeita , amanhecera com um cheiro de incenso, dendê e provocação histórica.

Por volta das quatro, quando o sol ainda insistia em dourar os telhados, começaram a chegar os primeiros. Mãe Aruanda, Mãe Ritinha de oxum com seu pano da costa amarelo e branco, ajeitava as pulseiras enquanto murmurava:

-  Esse povo pensa que a gente vem pra provocar… A gente vem é pra lembrar.

Ao lado dela, Zé Dandara, professor de história e militante da causa negra, sorria:

-  Lembrar e ensinar, Mãe. Porque esquecer é que eles gostam.

E logo chegaram os abatazeiros. Primeiro tímidos, como passos dados em casa estranha. Depois firmes, confiantes, rompendo o ar seco do início da noite. O povo foi formando roda, cruzando olhares, reconhecendo parentesco que não está no sangue, mas na luta. Pessoas negras, pardas e brancas , tudo misturado de um jeito que só o Axé sabe fazer sem pedir licença.

Curiosos se aproximavam. Alguns com admiração, outros com aquela cara de quem testemunha o fim do mundo só porque ouviu um atabaque. Teve até um senhor que, ao ver as vestes africanas, murmurou baixinho:

- Eu nunca vi roupa tão bonita… parece que a cidade ficou com mais cor.

A esposa dele, porém, apertou o braço e sussurrou:
- Credo, Manoel, isso aí é coisa de macumbeiro!

Joana da Casa de Cultura, artista local, ouviu, virou e respondeu com um sorriso que era faca e flor ao mesmo tempo:

- Minha senhora, macumbeiro não. Devoto do sagrado. Cada qual com seu caminho, né? Aqui ninguém tá tirando altar de ninguém. É só respeito que a gente quer.

A mulher desconversou e puxou o marido, que olhou pra trás como criança arrancada do brinquedo.

Quando os tambores começaram o primeiro a rufar, a atmosfera da Praça da Bíblia mudou como vento que vira de repente. Só quem estava lá sabe explicar , porque tambores não tocam, chamam. E foram chamando tudo: ancestralidade, memória, denúncia, força e aquele tipo de alegria que não dá pra vender em shopping.

Sentir um cheiro diferente na praça, algo que lembrava uma essência rara impossível de ser reproduzida em laboratório. As pessoas começaram a ficar encantadas com os encantados que provocavam choque anímicos nos médiuns. Era tudo no mínimo diferente.  

O cortejo se formou, puxado pelos Blocos Afros, que vinham com a energia de quem sabe que a cultura negra nunca foi só cultura: foi e é resistência. No microfone, Zé Dandara bradou:

- Hoje caminhamos por quem veio antes de nós e não pôde caminhar. Ora yêyê ô, minha gente! Que Oxum nos conduza!

A multidão respondeu com um coro que parecia levantar poeira colorida. A caminhada seguiu pelas ruas principais, arrastando gente, olhares e comentários atravessados.

Nas portas das lojas, o comércio parou. Tinha vendedor que sorria, tinha outros que baixavam as portas só de ver turbante. Racismo religioso? Estrutural? Dos dois tipos, com direito a pacotinho brinde. Vejo o racismo religioso como algo que nasce da incompreensão, do racismo gravado no subconsciente, embasados em doutrinas criadas por homens que interpretam textos bíblicos de acordos com sua visão deturpada da história

Lia, uma adolescente de 14 anos, caminhava pela primeira vez. Olhava tudo com olhos de festa e de descobrimento. Puxou a mãe, animada:

- Mãe, por que que tem gente olhando feio?
- Porque tem gente que tem medo do que não conhece, filha.
-  Mas é bonito demais pra ter medo…
- Pois é. Só quem conhece a beleza é quem não tem medo.

Os cânticos ganhavam volume. As palavras de ordem cortavam o ar como flecha:

-  Racismo é crime!

- Respeitem o sagrado africano!
- O Brasil é laico!
            -  A intolerância não vai nos calar!

E cada grito parecia acertar em cheio algum muro invisível da cidade.

Quando o cortejo dobrou a última rua e o Rio Mearim se abriu com suas águas pardas no antigo porto da cidade, Lia parou, boca aberta. À beira da água, Mamãe Oxum ,  a estátua dourada, altiva, suave ;esperava o cortejo como mãe que reconhece seus filhos, mesmo os que chegam atrasados.

Ali, diante de Mamãe Oxum, senti que a cidade respirava diferente. Era como se casa passo até ali fosse uma pequena vitória.

O vento soprou diferente. O tambor mudou de tom. As pessoas se aproximaram devagar, como quem pisa no coração da própria história.

Mãe Aruanda ergueu as mãos:

-  Ora yêyê ô, minha mãe! Dá caminho pra essa cidade que ainda tá aprendendo a amar todo mundo.

Joana, emocionada, limpou discretamente uma lágrima:

- Toda vez que eu vejo essa imagem eu lembro que a gente é rio, né? Mesmo quando tentam represar.

Zé Dandara completou:

- Rio, Nina… e corredeira. Porque onde a gente passa, ninguém fica como estava.

A multidão fez silêncio. Um silêncio que não era ausência , era presença. O tipo de silêncio que os tambores respeitam antes de voltar a tocar.

No fim, a Caminhada do Axé não foi só caminhada.
Foi lembrança.
Foi denúncia.
Foi abraço.
Foi o grito de um povo que se recusa a ser apagado.
Foi a educação que não cabe nas escolas que tentam controlar cor, fé e pensamento.

E naquela noite, na Terra da Bacaba, até o Rio Mearim pareceu andar alguns passos com eles.

Porque quando o Axé caminha, até a água se levanta para acompanhar.

Ora yêyê ô.

José Casanova
Professor, Jornalista e Escritor membro da
Academia Bacabalense de Letras
Academia Mundial de Letras da Humanidade
Tutor da Academia Maranhense de Letras Infantojuvenil

0 comments:

Postar um comentário